Prelúdio

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Era como voar.

Seu corpo atingiu as correntes que a levaram até a luz. Uma luz tão intensa e tão fria quanto tudo ao seu redor. Pequenos fios atravessavam seu corpo, alcançando o espírito, e a fazendo estremecer como se seu peito congelasse e descongelasse a cada pulsação. Não havia peso, mas sabia que havia carne sobre seus ossos.

O pior era não respirar. Tentava encher-se de ar, e se enchia, mas não era o necessário para seus pulmões. A luz a engoliu, degustando seus cabelos, debaixo das unhas e o interior de sua garganta, devorando seu cerne. Frígido, queimava e azulava, um cadáver mantido em gelo. E então despertou.

A luz cessou, seus pés alcançaram a firmeza de um chão de pedra lascada, e todo o peso retornou a seus calcanhares. Seus braços não mais flutuavam graciosamente, mas estavam suspensos e precisava de força para que não desabassem ao lado do corpo. Abriu a boca e sugou o ar, sentindo seu peito se estufar e suor lhe escorrer as costas. Alívio. Só quando as pálpebras ficaram negras é que notou que mantinha os olhos fechados. Toda a claridade transpassara-as e agora se encontrava na completa escuridão.

Então abriu os olhos.

A parede de pedra estava a um palmo de seu rosto, dando-lhe um susto e fazendo-a cambalear para trás, até cair sobre pequenas pedras, que ela notou estarem se esfarelando ao toque. A suas costas, a luz brilhava forte e enregelada. Mas não refletia na rocha. Temia olhar para trás e ser engolida novamente, então olhou para cima. Precisava olhar para algo. E soube naquele instante que fizera a escolha certa.

Quando o éter se mostrou a ela, não sentiu curiosidade, não sentiu felicidade, não sentiu qualquer das coisas comuns que qualquer pessoa comum sentiria. Sentiu-se vazia. A aquarela formava e desintegrava nuvens, cores, cheiros. Mas era maciça. Não como águas em espirais, mas como corpos constituídos de matéria sólida, maleável, como braços e pernas. Eles sim estavam curiosos. Sentia-os admirando-a.

Não podia desgrudar os olhos daquele mundo, com que sonhara tantas vezes. Gravava no interior de suas pálpebras a memória das formas disformes coloridas, corpóreas e intensas nuvens de éter. Não notou como caminhava lentamente para mais perto do fim da caverna, mas seu rosto tocou a rocha fria e ela sentiu o queixo raspar, a pele rasgar e uma leve ponta de dor alcançar sua alma adormecida.

Não abaixou o queixo. Lá em cima uma onda espiralava para baixo, vermelha venenosa, circundando sua cabeça e tocando de leve seus cabelos. As nuvens se abaixaram, com curiosidade expirando de sua matéria. Há milênios não viam um humano. Agora conseguiam se lembrar de como eram.

Elas queriam devorá-la.

Mas não ousavam se aproximar. O silêncio soava como uma música formigando em seus ouvidos, era uma melodia que a incomodava, e sempre que tentava ouvi-la, ela desaparecia, deixando-a mais ciente de seus próprios ruídos. Como respirava, ofegante. Como seu sangue pulsava, acelerado. Como suava e como tudo se tornou um inferno.

As línguas de fogo desceram sobre ela e a separaram, corpo e espírito, descascando-a, despindo-a. O fogo consumia, era quente, era envolvente, era ele mesmo. Fogo. Sem chama, sem labareda, sem fagulha. Apenas fogo. E se extinguiu quando o corpo só era cinza. Mas ela ainda estava ali. Sem um corpo e um propósito, mas ainda estava ali.

E tudo cheirava a tinta e dor.    

Línguas de Fogo - Crônicas de ÉterOnde histórias criam vida. Descubra agora