Capítulo 6 - Mya Tem Medo de Luz (não revisado)

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Não esperava que seus pais a tivessem abandonado em frente a Academia porque não a queriam. Isso seria esperar muito da atenção deles. Mya acreditava que eles morreram doentes em algum beco qualquer e que outros andarilhos encontraram um bebê moribundo, esgoelando-se. Estes andarilhos levaram-na até Felon, que a recebeu como recebia o leite e os livros de doações. Assim como o leite e os livros, fora útil no que lhe servia. Pensar, aprender, decorar, levar coisas de um lado ao outro, desenvolver projetos, organizar mesas e relatórios. Só não lhe era permitido sair. E, por mais incrível que pareça, era a única coisa que realmente queria. Desejava mais sair a aprender. Isso era ruim?

- Você continua absorta. - Nichael suspirou, traçando um risco sobre o pergaminho a frente de ambos. - Preste atenção, Mya. 

Patlovich significava "Aquela Sem Nome" nas línguas do Sul. Mya era um simbolismo para "minha" e tudo indicava que Felon se sentira no direito de chamá-la "Minha Órfã" sem remorsos ou pesos na consciência. Na verdade, era certo que para ele não significava nada o modo que a chamava. De órfã ou de posse. Mas aquilo a incomodava muito. Quando algum sulista a chamava "Mya Patlovich" ela o encarava e esperava se ele iria sorrir, dar uma ordem ou apenas continuar falando. 

- Patlovich?

- O que foi, Kay? - ela respondeu, esquecendo-se por um segundo de ser educada, gentil e ela mesma. 

- Você precisa me dizer quanto é preciso de cada substância para que eu possa fundi-las. 

- Será necessário muito poder etéreo, se é isso que você imagina. E, até onde eu sei, não há aprendiz capaz de dominar o Éter há anos, Mestre Zofie não está disposta a usar seu conhecimento e beneficiar apenas seu irmão. Nem mesmo Gappi nos ajudará. Projetos são feitos somente por alunos. E eu me recuso a aprender magia.

Nichael riu, quase com deboche, porém tão sutilmente que Mya não notou o jogo de orgulho entre ambos. A relação química e morfólogo era sempre assim, embora quisessem ver, não viam, mas o faziam e lá estava. Agathe conseguia enxergar. 

- Você não precisa aprender magia, mas nunca diga isso sobre a Linguagem novamente, Zofie a mataria. Não é feitiçaria, é ciência. A Igreja com certeza aprova ciência, querida Mya. - e piscou o olho, ignorando a menina que ia interrompê-lo naquela explicação. - Não vamos debater religião, deixe isso para Felon e Zofie. Eu sei que não podemos usar o éter, eu mesmo já tentei "aprender" - e sorriu de novo, com mais gentileza. - Mas conheço alguém que pode nos auxiliar. 

- Alguém? Não há uma pessoa que saiba usar o éter num raio de... - ela parou, piscando os olhos como se seus neurônios mandassem correntes de eletricidade com carga muito elevada, sem a resistência necessária. - Não pode ser! Você não está falando de Dameros, está?

A expressão de horror no rosto do solar dizia tudo. 

- Nem se eu estivesse consumido pelos mil fogos do éter! Você enlouqueceu, menina? Estou falando de uma aluna, ou quase aluna. Ela pode usar o éter, mas não sabe controlá-lo. Vou ajudá-la nisso e quando chegar a hora, ela poderá fundir nossa teoria e criar o que precisamos para ir embora daqui, para longe. 

- Eu não confio nisso. - a órfã suspirou, ainda incomodada com os feixes de luz flutuantes da Biblioteca. Aprendera a confiar em si mesma, sem precisar da ajuda de outrem em seus projetos. Obtivera sucesso através do próprio esforço. Mas a ideia de Nichael era simplesmente impossível em todas as probabilidades. Até mesmo se usasse magia.

- Você não confia em nada, Mya Patlovich, mas eu confio em Agathe e sei que ela pode fazer isso. 

- Agathe?

Num passe de mágica, um vulto surgiu ao lado de Nichael, bem detrás de suas costas, com cabelo vermelho fogo e olhos de corça. Ela a estudou com preocupação e então abriu um sorriso nervoso, esticando a mão para cumprimentá-la. 

- Eu sou Agathe. 

Oh, sim. Como duvidar do poder de persuasão de Nichael Kay? Aquele garoto sabia exatamente onde pôr suas peças, sempre maquinando o que deveria fazer a seguir. Não era a toa que Felon se ressentia por tê-lo perdido para Gappi. Irmão e irmã tinham muito em comum, também. Ambos Kay, ambos inconfiáveis. 

- Claro que você é Agathe. - Mya apertou-lhe a mão com afeto, jogando o cabelo para cima do ombro e abrindo seu sorriso mais gentil. - E eu sou Mya. 

- Ele disse isso. - a menina ruiva assentiu, abaixando sua cabeça. Agathe estava confusa com a mudança de Mya. Antes ela estava muito inquieta, até mesmo brava com Nichael, embora ele só quisesse ajudá-la com seu projeto. - Eu vou ajudar você a fazer um super-projeto para o seu professor.

Mya desviou os olhos para Nichael. Ele sorria de lado, sarcástico, orgulhoso e completamente detestável. Era impossível entender como todos na Academia o achavam atencioso e responsável. Claramente era apenas um nobre mimado, rebelde e irreflexivo que se tornaria um dia o Sultão de Kayalto e governador do deserto. Inveja? Não, ela sentia pena.

Melhor não ter família nenhuma que ser uma Kay.

- Estou muito feliz que possa contar com você, Agathe. 

- Quando eu for aluna da Academia, irei recompensar ainda mais. - a garota saltitou, erguendo poeira e ruido dentro da Biblioteca. 

- Eu prometi que a ajudaria a passar no teste de admissão. - Nichael contou, encostado contra a estante de livros de botânica, ainda muito satisfeito com seu plano arranjado. - E você deveria ajudar também, Mya. 

Aquela era a parte que ele estava escondendo, é claro.

- Agathe - Mya chamou-a - Onde ficou escondida? Eu jurava que não havia nenhuma menina ruiva tão fofa atrás do Nich alguns instantes antes. 

Agathe ergueu os olhos para Nichael e ambos riram juntos. Deveriam ser muito próximos, não? Ele a tinha na palma da mão, aquele artista de circo. 

- Eu estava invisível.

Línguas de Fogo - Crônicas de ÉterOnde histórias criam vida. Descubra agora