Capítulo 2 - O Primeiro Desencontro

83 10 6
                                    




Ainda cedo, naquela mesma manhã, já espreitava pela vitrine os deliciosos doces da padaria mais próxima da Academia, degustando com os olhos as opções de cardápio. Ele era louco por chocolates bem derretidos, queijos bem derretidos e morangos bem derretidos. Qualquer coisa quente e derretida o deixavam derretido. Não era segredo a ninguém que Nichael Kay fosse o grande adorador dos doces da velha Primaveril.

A moça do outro lado do balcão via-o, sorridente, pois sabia que o cliente mais fiel estava ali. Seu avental bem passado não apresentava uma mancha sequer, falando por si mesmo que ela não preparava os sensacionais doces, apenas os vendia, com seu belo rosto que sempre facilitou.

A filha de Primaveril suspirava, os nós de seus dedos estavam brancos no punho de ansiedade, para quando ele entrasse por aquela porta, soasse o sino e pedisse por seu preferido: sortidos. Ela sabia que perderia a fala e que apenas sorriria, entregando-lhe o que fora pedido, mas não conseguia deixar de se imaginar trocando algumas palavras com o Kay.

E Nichael iria mesmo entrar, se seus olhos não vacilassem, o vidro não refletisse o mundo a suas costas e ele não visse o cabelo ruivo como fogo passar saltitante. E logo atrás, um baixo e encarquilhado velho de roupas em farrapos, tentando acompanhar o ritmo. Nichael se virou curioso com as duas figuras. Era raro ver alguém do Oriente ali, principalmente quando estavam tão mal vestidos, sem uma corte de bajuladores e criados logo a suas costas ou liteiras para carregá-los. Os orientais não se percebiam, os dois ruivos não pareciam notar o efeito que causavam, abrindo espaço por aonde iam.

E iam para a Academia.

A Escola de Ciência crescia no centro de um grande cerco de pedras de sal que refletiam aos raios solares. Ainda fazia um pouco de frio, pois não era totalmente dia. A Lua no céu falava por si mesma que a vida permaneceria quieta até que fosse sua vez de ir, e Nichael sempre foi obediente quanto a princípios, ele seguia as orientações de sua religião com pontualidade. Mas lá estavam eles: dois seres diferentes que caminhavam para sua Academia, um deles aparentemente muito animado, o outro muito perdido.

A chama de curiosidade inflamou-se ainda mais e ele recolocou a boina sobre os cabelos escuros e, com passos largos, desviou de vendedores de frutas e botiqueiros, não perdendo os dois estranhos de vista, nem mesmo quando passaram pelos grandes muros de sal. Seus pés o levaram até o destino antes que notasse.

- Bom dia, senhor e senhorita. – disse, com a maior educação, em oriental. A língua sempre lhe soou muito gutural e feia, mas ao menos tinha utilidade.

Foi recebido com um grande silêncio, ou talvez um tratamento esnobe, pois ambos continuaram caminhando. A menina não erguera os olhos do edifício principal, o homem ergueu as sobrancelhas e seu bigode ondulou, como se ele estivesse abrindo a boca, sem saber o que dizer. Queria falar mais, talvez se demonstrasse uma reverência os orientais se sentissem mais respeitados. Foi então que Nichael tropeçou sobre os próprios pés e caiu na fonte do pátio da Academia.

A água era doce e fria, e recebê-la foi a pior surpresa que poderia ter naquele momento, pois ele detestava o frio. Sua pele se arrepiou até o peito dos pés e a falta de ar momentânea o obrigou a se levantar desorientado e com a boca aberta, sugando o ar em pânico, seus cabelos antes cacheados agora estavam presos aos longos cílios negros. Ouviu as risadas, também ouviu seu nome ecoando na voz de Mestre Felon, e então sua orelha sendo violentamente puxada. Mas, quando tentou encontrar os dois estranhos ruivos, eles já haviam sumido, fazendo-o se perguntar se estava ficando realmente louco.

Seria tudo culpa de Zofie.

Seria tudo culpa de Zofie

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.
Línguas de Fogo - Crônicas de ÉterOnde histórias criam vida. Descubra agora