Capítulo 1 - O Deserto da Quimera

146 14 21
                                    


A areia se grudava por entre os vãos do chinelo. Engoliu em seco novamente, pensando que já fizera aquilo tantas vezes que se afogaria no próprio nervosismo. E ela engolia em seco. Forçou-se a rir solitária de seu gracejo. Mas logo percebeu que era apenas um meio de evitar o conflito interno. O que realmente ela temia? Abandonar os pais em meio à fome e miséria, ou talvez abandonar a si mesma em um mundo que ela não conhecia? Um riso atravessou seu rosto pálido e chamou a atenção de sua mãe. Tão magra e tão baixa quanto à filha, possivelmente tão morta de fome e com toda a certeza uma mulher do deserto.

- Não precisa fazer isto, você sabe menina.

Sim, sabia. Mas as escolhas eram tão tenebrosas quanto não fazer nenhuma. Morrer no deserto ou morrer na vila? Talvez preferisse ver novas areias, para compensar o fato do fim abrupto de uma vida prematura. Agathe se esforçou para mudar o tom de voz. A mãe detestava quando usava palavras difíceis.

- Tempos difíceis, medidas difíceis.

Ela chiou os dentes e virou-se para seu fogão, a lenha seca e a areia sob o fogo estavam queimadas e a panela de barro exalava delicioso aroma de peixe. Quem a culparia? Tempos difíceis, pessoas difíceis. O deserto criava vida seca, retorcida e crocante. Ossos fáceis de estalar. Agathe aproveitou e estalou os dedos das mãos, como forma de aliviar a tensão.

O pai já se demorava. Ele sempre demorava; todos sempre demoravam, a pele de couro queimado de sol não se esticava mais do que o necessário. Energia demais, vida de menos. Nada desperdiçado no deserto. Nem mesmo as palavras da mente. Pensamento? Desgasto em miolos, pouco músculo útil às redes de pesca e arpões. Agathe, de braços finos e dedos macios, tinha fortes pensamentos. E imaginou os pais vivendo em uma grande cidade.

Ela deveria se esforçar tanto para alcançar a grande cidade, quanto para conseguir levá-los até lá.

Mas sabia o real motivo da demora. Ele acreditava que ela o estava deixando para sempre. Adiar a partida, adiar o momento de vê-la. Talvez adiar a dor de perder. Ouviu o som das rodas da carroça nas esteiras do chão e moveu-se petrificada para fora. O sangue corria gelado, mesmo com o intenso sol do deserto logo acima de sua cabeça. Diziam que ela nasceu no rio, durante a pesca, antes de conseguirem tirar sua mãe do Sol, e que por isso havia-se queimado e as madeixas cresciam vermelhas-fogo. Lambida de Sol, ele não deveria ter gostado do sabor, ela era vermelha como uma planta murcha.

- Pai – chamou-o, seu corpo estava inclinado, como uma vírgula. Ele não sabia o que era uma vírgula. Também não sabia o que eram letras, conhecia seu nome, mas nunca as vira. Ela conhecia o nome e as via, constantemente, em livros.

Livros emprestados de seus roubos noturnos às tendas dos mercadores. Quem se importava com livros? Seu destino era a Academia, eles sempre compravam todo tipo de livro. Por isso, ela carregava na cintura o saco com todos os quatro volumes que havia adquirido nos últimos dois anos, para levar ao lugar que pertenciam. Não era roubo se ela fizesse aquilo.

- Que?

- Devemos ir agora. O Sol já está quase alcançando a Lua. – ela apontou o céu, onde a lua branca se encontrava, bem sobre suas cabeças. Significava que logo o dia começaria realmente. Agathe sempre adorou o resquício da meia-lua em dias claros como aquele, era apenas uma lua cortada na metade, que logo desapareceria com o brilho do Sol. Mas vê-la num céu diurno a fazia pensar que tudo era possível.

Ele grunhiu em concordância.

Agathe virou para se despedir da mãe, que estava parada no batente da porta, com os olhos na Lua e no Sol, observando o que a filha havia acabado de dizer. O Sol alcançando a Lua. Como se andasse para ela. Nunca havia pensado nisso antes, e achou agradável.

Línguas de Fogo - Crônicas de ÉterOnde histórias criam vida. Descubra agora