Prólogo

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A minha história começou a ser escrita muitas eras antes do meu nascimento. Meus pais me ensinaram que, para que um homem entenda seu presente e projete seu futuro, deve primeiro conhecer o próprio passado... Às vezes, porém, o início é tão distante e obscuro que não se pode ter certeza do que é real e do que é lenda...Enfim, os fatos não importam, aprendi isso ao longo dos anos, o que realmente importa é a maneira como são contados. Os homens acreditam no que querem acreditar...

Quando eu era apenas um garoto de Noitcent ouvia fascinado as aventuras do primeiro Conawell que teve seu nome escrito nas folhas de ferro. Por mais espantosas que fossem suas histórias, algumas até chegavam a ser inacreditáveis e sem sentido, eu acreditava e orgulhava-me de ser seu descendente.

Conta-se que há mil e duzentos anos, na última noite do Tempo do Dragão, Eoghan retornava de sua caçada noturna quando viu um risco cortar o céu. Como em muitas outras culturas, para o povo do sul de Noitharan uma estrela cadente era um presente de Paeno, trazia sorte e poderia até mesmo conceder um desejo se o pedido fosse feito com fé forte o bastante.

Eoghan fechou os olhos mentalizando um pedido. Estava cansado de perder todas as justas, todas as disputas. Já tinha se acostumado e até aceitado a humilhação pública e as chacotas que vinham após cada derrota, mas estava exausto de sempre ser o caçador.

Todas os dias, quando Firo ia para seu sono e Cala abria seus olhos gelados, por quarenta e três vezes seguidas, era ele que sozinho subia as montanhas para caçar – seu castigo por ser o pior guerreiro de sua tribo.

Eoghan fechou os olhos e pediu por um 'Dom'.

Por que não era à toa que Eoghan era o pior guerreiro de sua tribo; ele era um dos poucos rapazes que não tinham nada de especial. Os jovens noitharaenses nasciam com diferentes Dons: alguns eram capazes de controlar a água, eram abençoados por Ghiva; outros de fazer a terra tremer, os filhos de Pedah. Havia ainda quem conseguia se transformar em animais ou voar pelos ares, devotos a Cala. Os rapazes de sua tribo, especificamente, sabiam comandar a terra. Eoghan fazia parte do pequeno grupo de desgraciados, que por mais que rogassem aos deuses, não recebiam nenhuma dádiva.

Eoghan tinha nascido sem nenhum Dom. Então fechou os olhos e pediu por um que ninguém tivesse:

– Por favor, deus Paeno, me dê um Dom. Algo que impeça os outros rapazes de me ferir. Eu tenho tanto medo de morrer! Tudo que quero é que ninguém mais me machuque.

Faltavam ainda várias milhas para chegar à sua aldeia e Eoghan caminhava muito lentamente, pois a noite tinha sido boa e ele carregava um pesado cervo da montanha em sua rede. A estrela ainda brilhava no céu e parecia tão próxima da terra que Eoghan teve a impressão que ela estava caindo.

Um tremor foi sentido nesse momento. No início o rapaz imaginou que seria passageiro como os que estavam acontecendo há dias. As oferendas feitas pelos anciãos não estavam trazendo resultados e Pedah, deusa da terra, estava mais furiosa a cada dia. Eoghan se ajoelhou no chão que chacoalhava violentamente e fechou os olhos murmurando mais uma oração:

– Poderosa Pedah, perdoe-nos se a ofendemos.

Os cães latiam alto e se alvoroçavam. Eoghan continuou uma prece silenciosa para Pedah para que ela se acalmasse. Mas ela se agitava cada vez mais como se a própria deusa estivesse levantando das profundezas de sua casa.

A noite de repente se tornou imensamente quente, mesmo para o Tempo do Dragão. Eoghan olhou para o céu e Cala também parecia furioso. Talvez tivesse acontecido alguma briga ou desavença entre os irmãos, e parecia que os dois se atacariam em uma luta até a morte, se fosse possível que um deus morresse. Eoghan viu muitas outras estrelas cortarem o céu, que ficou claro como se Firo estivesse acordado.

Escamas de SangueWhere stories live. Discover now