Cap. IX - Adeus

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Os dias passaram rápidos e estavam cada vez mais quentes e claros. Muitas vezes chovia, mas nada ficava molhado por muito tempo. O castelo de pedra era um alívio, pois continuava fresco enquanto o sol castigava toda a aldeia.

Xanthus vestiu seu casaco de veludo e arquejou com seu peso. Ainda era muito cedo, mas o calor já entrava pelas janelas e enchia todos os cômodos. Pegou a coroa de cima da mesa e a colocou na cabeça. O metal frio tornou-se quente no mesmo instante em que tocou a carne. Xanthus pensou que ao final do dia a coroa estaria tão quente que queimaria sua testa. A visão de Foster no corredor, aguardando-o tão cedo lembrou-lhe do quanto o dia seria difícil.

– Está tudo pronto,vossa majestade.

O rei caminhou pelos corredores em silêncio. Ao invés de descerem as escadas eles as subiram. Xanthus não fazia esse percurso com frequência, mas era a segunda vez em menos de quinze dias que o repetia.

Doze dias antes dois dos guardas voltaram de uma empreitada procurando por traidores e trouxeram um homem chamado Gary, camponês, acusado de ser um dos saqueadores.

Junto com Gary os guardas haviam encontrado outra moeda de fogo. Xanthus sentiu o pesa da moeda e brincou com ela entre seus dedos. Da mesma forma que a primeira, aquela moeda havia sido furtada do túmulo. Xanthus achava que aquela moeda ainda estava lá, guardada, na última visita que fizera ao túmulo com seus filhos, mas não tinha como ter certeza, pois na época estava preocupado somente com a moeda de Roch.

Gary confessou ter roubado a moeda com a ajuda de dois funcionários do castelo. Príncipe Joarque ficou feliz com as prisões e como todos confessaram os crimes, convenceu o pai a não executá-los. Os três estavam agora nas masmorras do castelo de Xanthus.

Geralmente as prisões e calabouços ficam no subsolo dos castelos, mas não naquele. Quando o rei Sten mandou construí-lo, centenas de anos antes de Xanthus nascer, imaginou que seria muito mais difícil uma fuga por cima do que por baixo. Apesar dos dragões de terra e de ar cuidarem das fronteiras de terra e do mar Sten sempre gostou mais dos dragões de ar e de fogo.

Assim os calabouços ficavam no último piso do castelo, na cobertura e era lá que estavam os três rebeldes, queimando ao sol. Mensageiros mandaram noticias de que depois da captura de Gary os saques cessaram em quase todas as aldeias.

Os príncipes Joarque e Ásvila relaxaram depois disso, estavam mais tranquilos depois de meses de tensão, mas Xanthus percebia que Edvar continuava preocupado. Ele também percebeu, pensou Xanthus. O rei não acreditava que os saques estavam acabados. As prisões, as confissões, tudo tinha sido fácil demais, tranquilo demais. Além disso, ele ainda não conseguia entender como funcionários comuns haviam conseguido entrar no túmulo por duas vezes e roubado as moedas. Todos eram revistados ao sair dos portões do castelo e nenhum dragão deixaria passar aquelas moedas. Ainda tinha muita coisa mal explicada e tudo isso só o deixava mais apreensivo para começar a semana que se seguiria.

Hoje começaria o acasalamento.

Todos os anos na última semana do mês do dragão, a semana mais quente do ano, o castelo perdia sua principal linha de defesa. Os dragões abandonavam seus postos e seus mestres para voarem, correrem, nadarem ou cavarem até um lugar que achassem apropriado, seguro e aconchegante para colocar seus ovos. Xanthus nunca gostou daquela semana, sempre sentia-se inseguro, incompleto. Seu pai costumava dizer que os humanos haviam ficado muito dependentes dos répteis, Xanthus debochava dizendo que aqueles animais eram servos, guardas, escravos, mas sabia que não era verdade e que o pai tinha razão. Os Reinos de Noithar não sabiam mais viver nem se proteger sem os dragões.

Sem os dragões eles eram apenas homens, os guardas do fogo ficavam iguais a qualquer outro, talvez com armas melhores, mais bem treinados, mas iguais aos outros. Durante uma semana estariam vulneráveis e se um exército rebelde atacasse teriam uma luta corpo a corpo.

O rei foi o último a chegar ao topo do castelo e todos o esperavam. Ele caminhou por entre seus capitães de ferro e chegou até seus filhos. Estavam ali, junto com suas famílias. Príncipe Joarque com sua esposa Trina que segurava o príncipe Kalevi pela mão. Um dia seria Kalevi que estaria ali, dando adeus ao seu dragão. Edvar não tinha um dragão, mas também estava ali com sua esposa Gwyneth e o filho do casal, Ardin.

Ásvila, o caçula perdera sua primeira esposa há oito anos, de uma febre que curandeiro nenhum havia conseguido abrandar, ele ficou com ela até o fim, segurando sua mão até o momento em que seus olhos se fecharam pela última vez. Desta união havia nascido Vaniza e Artemus. Vaniza foi a que mais sofreu com a morte de Damra, não falava mais, mal comia, emagreceu e se isolou. Ásvila demorou a se casar novamente, mas então Xanthus o convenceu de que as crianças precisavam de uma mãe e lhe trouxe Bellona.Hoje eles tinham o pequeno Daymond, Vaniza melhorou muito após o casamento do pai e Bellona fazia tudo para agradar a garota, e agora que Vaniza já estava com quatorze anos, madrasta e enteada eram boas amigas.

Xanthus cumprimentou os filhos e foi até a borda do castelo. Somente os capitães de ferro ficavam ali, os de patente mais baixa esperavam no pátio. Xanthus podia ver toda a aldeia dali de cima. Hoje muito mais cheia do que de costume. Todos os homens, dos cinco reinos de Noithar que tivessem um dragão em idade de procriação que tivessem condições de viajar deveriam estar ali. Muitos soltavam seus animais de sua própria aldeia, pois era muito difícil fazer a viajem até a capital todos os anos.

Lá embaixo os dragões se acomodavam junto aos seus mestres. Exibiam diferentes cores, tamanhos, texturas. O rei se aproximou de Solina, sua dragoa dourada que refletia os raios de sol tornando difícil até olhar para ela, era como se Solina tivesse se banhado em ouro líquido. Acariciou seus pequenos chifres. Olhou para Joarque e Ásvila e depois para Orion ao lado de sua dragoa. Apenas quatro dragões fêmeas. Se Foster tivesse aceitado ser um guerreiro e Edvar a ter um dragão seriam seis, mas nenhum dos dois tinha um dragão. Então hoje os Reinos de Noithar contavam com apenas quatro dragões fêmeas. "Espero que sejam suficientes", pensou Xanthus.

Qualquer dragão pode botar um ovo, inclusive os machos, mas somente um dragão fêmea pode chocá-los. Dragões são animais incrivelmente perigosos e difíceis de controlar, por isso sua população devia ser controlada. Somente trita dragões por ano podiam ser admitidos no reino, a mesma quantidade de recrutas que iniciariam o treinamento na Academia, e somente a família real e os Conawell tinham o direito de terem dragões fêmeas. Este ano chegariam trinta e dois dragões, pois dois dos príncipes, Kalevi e Ardin completariam quinze anos.

Xanthus olhou mais uma vez para sua aldeia. Os jovens recrutas da Academia também estava lá embaixo. Trinta novos guerreiros, para os trinta novos dragões que retornariam ao final da semana.

Xanthus sentiu uma grande angústia e um grande medo. Teve vontade de não deixar que os dragões se fossem. Queria pedir para que Solina ficasse, que precisava dela. Ao invés disso o rei sorriu, olhou nos olhos negros de Solina e piscou.

Solina abriu as imensas asas de ouro e alçou voo.

Os dragões que podiam voar voaram acompanhando Solina, Brisa e Brasa. Gelo, o dragão de Saulo pulou na água e os dragões do mar pularam no Mar do Profundo como se fosse uma banheira e o acompanharam. Rocha saltou do castelo até o chão e os dragões da terra apenas correram atrás dele.

O grito de liberdade dos dragões durou apenas cinco segundos, depois não se ouviu mais nada.

Não ouviriam mais nada por uma semana.

Escamas de SangueWhere stories live. Discover now