Cap.II - Capital

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A capital dos Reinos de Noithar era na verdade um amontoado de casas de madeira tão perto umas das outras que não se sabia onde terminava uma e onde começava outra.

As poucas construções de pedras, mais baixas e compridas, margeavam as ruas coladas a barracões onde homens trabalhavam com madeira ou bronze.

As ruas largas eram feitas com grandes blocos de pedras chatas meio irregulares, mas que impedia que tudo virasse um lamaçal em tempos de chuva.

No final da rua mais larga de todas via-se o castelo. Uma fortaleza de pedras que se estendia por metros, ao sul da aldeia. De três lados o castelo era rodeado por um rio escavado, se alguém quisesse entrar por ali teria que encarar a fossa cheia de estacas, armadilhas e dragominhos ou deveria pedir permissão para atravessar a ponte levadiça.

A parte sul do castelo dava para um despenhadeiro incrivelmente alto que acabava nas geladas águas do Mar do Profundo.

Ronald tinha se acostumado com aquela visão monumental, pois nascera ali e passara todos os seus doze anos vendo a extraordinária construção que despontava do meio de Noithcent, como se fosse um coração de pedra intransponível e invulnerável. Então não era a imensidade do castelo que o surpreendia e que prendia seu olhar, mas seus guardas.

Havia um em cada torre do castelo, observando com seus olhos infalíveis, buscando em cada movimento algo suspeito, fora do normal, que pudesse ameaçar a tranquilidade do castelo e de seus moradores. Ronald olhava para os dragões nas ameias do castelo que estavam tão imóveis como se fossem esculpidos em pedra, quase podiam ser confundidos com gárgulas gigantes e perfeitas brilhando ao sol.

– Cuidado garoto!

Ronald se desequilibrou quando quase foi atropelado por um cavalo que passava.

– Cuidado Ron. Fique perto de mim.

Ronald correu para perto do irmão. Kearney era muito parecido com seu pai. O cabelo castanho escuro levemente ondulado emoldurava o rosto moreno claro, os olhos da mesma cor do cabelo. Já Ronald havia herdado os olhos verdes da mãe, assim como sua pele pálida, apenas o cabelo era escuro, apesar de ser espetado e não ondulado e macio como o do irmão. Kearney também estava encarando os guardas reptilianos do castelo.

– Um dia serão os nossos dragões que estarão lá em cima cuidando do rei.

Kearney e Mikhail trocaram olhares como se fossem dois cúmplices planejando algo secreto. Ronald teve uma pontada de inveja do irmão e do primo, pois nunca poderia ter um dragão. Deu uma última olhada nos dragões antes de continuar seu trajeto.

Os três caminharam pelas ruas sujas do centro da aldeia até chegarem à feira. Antes de entrarem naquele mar de gente que se acotovelava e empurrava para encontrar o que queria, Mikhail passou os olhos pelas barracas improvisadas procurando o que lhe interessava.

O emissário se empertigava junto a melhor e mais limpa barraca da feira. Os três meninos se embrenharam pela multidão, Kearney segurou firme a mão de Ron quando entraram na rua principal da feira, se desviaram uma vez ou outra para ver alguma coisa que os interessava, mas rapidamente chegaram onde desejavam.

Ao contrário das outras barracas aquela não estava cheia, o comprador era mais exigente. Todos os dias o emissário real saia dos portões para a aldeia e buscava tudo o que o castelo poderia precisar. No momento ele estava conversando com uma senhora que lhe entregava alguns maços de ervas, mas que logo foi embora. O homem se virou para os primos.

– Então o que me trazem hoje?

Kearney colocou a rede sobre o tablado. Sua mãe tinha separado cinco das melhores aves que o pai tinha caçado, Mikhail fez a mesma coisa.

– Estão fresquinhas, nossos pais caçaram ontem.

– Foi dia de descanço do seu pai ontem?

– Foi.

– os dois?

– Foi.

O emissário abriu as redes e analisou as aves. Os meninos as haviam depenado e limpado. O homem sorriu. Todas tinham um único e pequeno ferimento maculando a carne branca e firme, bem onde ficava o coração.

– Os pais de vocês são provavelmente os melhores arqueiros de todos os Reinos de Noithar.

Passou as aves das redes para um cesto. E pegou algumas moedas em sua bolsa de couro.

– Nós temos algumas penas também. – Mikhail estendeu um maço de penas negras e compridas. – Para escrever.

O homem pegou as penas e as trocou por mais uma moeda.

Os três saíram pelo outro lado da feira onde tinha menos gente e deram a volta para chegar até a praça. Sentaram em uma pedra grande e dividiram as moedas. Cada um pegou sua parte e guardou com cuidado. Kearney tirou uma moeda da sua parte e a deu para Roni.

– Guarde bem até a gente chegarmos em casa. Não deixe ninguém ver.

Ronald fechou a mão em torno do pequeno objeto. Desceram da pedra e começaram a voltar para a casa.

– Abram passagem!

Um homem vinha correndo pela rua com seu cavalo coberto por um manto vermelho. Enquanto o homem passava as pessoas iam se espremendo contra as casas, deixando toda a rua livre. Kearney empurrou Ronald para fora da rua bem na hora que os homens com as cornetas chegavam.

– Abram passagem para o rei!

Ronald sentiu o coração disparar quando viu os outros quatro cavaleiros que vinham. Ele sabia o que viria em seguida.

A carruagem chacoalhava sobre a estrada de pedras mal colocadas, puxada por seis cavalos negros enormes. Ronald esticou o pescoço para tentar ver alguma coisa, mas quando a carruagem se aproximou e ia passar por eles Kearney o puxou para baixo. Ronald se ajoelhou e abaixou a cabeça como todos os outros. Quando finalmente voltou a olhar para cima a carruagem com o rei já ia longe.

Ronald se levantou tirando a poeira dos joelhos, ainda tentando enxergar o rei, mas sua atenção se voltou para o céu quando ouviu o guincho que vinha dos ares. Virou a cabeça para cima e seu coração deu um novo salto ao ver os dragões sobrevoando a aldeia, com suas escamas brilhando sob o sol. Ronald estreitou os olhos e os cobriu com as mãos para tentar ver melhor. Mas ele sabia que no dragão azul claro estava montado o tio Orion.

O menino sentiu uma imensa onda de orgulho de saber que era seu tio que estava lá em cima e mais, que todos ali na aldeia sabiam que ele era o sobrinho de um dos Capitães de Ferro, mas também um pouquinho de ciúmes de ser o tio e não o pai. Um ciuminho infantil e secreto, mas constante, o mesmo que sentia quando todos falavam do grande guerreiro que Kearney seria, a bela esposa que o pai arrumaria para Kearney, o perigoso dragão que Kearney treinaria. Uma pontinha de ciúme que o fazia sentir-se culpado e que por isso ele o reprimia, mas que sempre estava lá.

Kearney o chamou de volta a vida e fez sinal para que o seguisse.

– Venha Ron, temos que voltar para casa.

Ronald correu atrás do irmão, pensando em como seria se pudesse ter um dragão ao invés de um martelo ou uma enxada. 

Escamas de SangueWhere stories live. Discover now