[3] O DILEMA DA COLORAÇÃO DE PELE

979 168 167
                                    

Auto-organização

No feminismo, a auto organização se refere a um grupo ou a uma reunião composta apenas por mulheres. Esses são importantes para que as mulheres tenham lugares seguros para dividir umas com as outras coisas que, perto de homens, jamais se sentiriam à vontade para tratar – esses assuntos vão desde menstruação e ciclo hormonal até experiências de estupro e abortos.

 Esses  são importantes para que as mulheres tenham lugares seguros para dividir umas com as outras coisas que, perto de homens, jamais se sentiriam à vontade para tratar – esses assuntos vão desde menstruação e ciclo hormonal até experiências de ...

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

A primeira vez que me chamaram de negra, eu fiquei confusa.

Eu sabia que não era branca. Eu estava muito mais próximo da cor do meu pai, que sempre se declarou negro sem nenhum problema, do que da minha mãe. Mas isso não parecia significar que eu era negra.

Meu avô era do Afeganistão, e fugiu de lá numa das guerras religiosas que estão sempre assolando o país. No Brasil, ele conheceu minha vó: descendente de escravos. Meu pai puxou quase todas as características maternas, exceto pelos olhos caramelos que herdou do meu avô. Os mesmos olhos que eu vejo quando me encaro no espelho. Minha mãe, por outro lado, veio de uma família mais sortuda. É certo que eles também são imigrantes, mas da Espanha, não de um país extremamente pobre ou com política conturbada. Eram ricos, brancos e, quase todos, de olhos claros. No topo da hierarquia social. Mas isso nunca os fez ser menos solidários com quem não tinha os mesmos privilégios. Só por isso que minha mãe conseguiu ir na manifestação das Diretas Já, aos dezessete anos, onde conheceu meu pai e onde, é claro, minha história começou.

Meus pais são politicamente ativos, cada um a seu modo. Esperança – minha mãe, que ganhou esse nome porque nasceu no auge da ditadura militar – era uma médica que tinha tudo para ser esnobe. Mas não era. Embora trabalhasse numa clínica chique em Belo Horizonte – cidade em que nasci, cresci e morei até vir para a faculdade – ela dedicava boa parte da sua semana para atender a população carente. Nosso apartamento estava quase sempre aberto para quem precisasse pedir ajuda. E eu perdi a conta de quantas vezes ela subiu o morro da favela para fazer curativo e extrair balas perdidas. Seu privilégio na conta bancária lhe dava a liberdade de ser o que bem queria. Ela decidiu ser um mulherão da porra.

Meu pai se dedicou a carreira acadêmica. Com muito mais dificuldade para estudar do que minha mãe, ele trabalhava de dia para poder frequentar a faculdade à noite. Virava madrugadas acordado para conseguir fazer todos os trabalhos. Aguentou preconceito de tudo quanto é jeito, por causa da sua pele, por causa do seu sobrenome, por causa dos traços muçulmanos inegáveis em sua genética. Não havia nenhum muçulmano na minha família, mas todo mundo achava que ele era. E, quanto mais a dita Guerra ao Terror ganhava forma, mais piadas idiotas ouvia. Mas ele aguentou isso com bravura e não desistiu de seu sonho, e toda sua consciência política o fez se dedicar a pesquisas sobre os grupos totalitários de cada parte do mundo.

Eu tinha orgulho dos dois.

Mas eu não podia negar que eles não foram claros comigo em relação a minha pele. Eu era a mais clara entre os três filhos – minha irmã mais velha era, pelo menos, dois tons mais negra do que eu; meu irmão caçula era uma cópia do meu pai – e talvez isso tenha me deixado perdida por muitos anos.

DespadronizadasOnde histórias criam vida. Descubra agora