O Caçador

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Antéria,
8 de agosto de 1536
Lucius Ganner

    

   – Eu prometo cuidar delas...
   – Fale como um homem – gritou enquanto seu corpo era sacudido por um violento ataque de tosse. – Você será o homem da casa agora, então me prove que é capaz!
   – Eu juro que cuidarei delas – disse sentindo a dor endurecer meu coração. – Nem que isso custe a minha vida.
   Ele apenas apertou minha mão, como um gesto de agradecimento e adormeceu. Esperei que outra crise de tosse viesse e que ele despertasse aborrecido e chamando por minha mãe com sua voz rouca e com a braveza que teimava em sustentar mesmo estando tão fraco, mas nada aconteceu.
   Pousei minha mão direita sobre seu coração, na esperança que mesmo fraco, eu o sentisse bater. Mas nada além de uma calmaria dolorosa era possível de ser sentida. Sabia o que aquilo significava e mesmo assim meu coração tão teimoso quanto ele, ansiava por mais tempo. Acreditava apesar de tudo, que ele logo acordaria e que tudo aquilo não tinha passado de uma percepção errada de alguém em desespero.
   O silêncio dominou a casa e naqueles poucos instantes enquanto ainda sentia suas mãos quentes embaixo da minha, engoli todo o sofrimento que queimava em meu coração e de cabeça erguida saí daquele quarto me sentindo não mais um garoto de doze anos, mas um homem, um homem que teria que caçar todos os dias para garantir a sobrevivência dos que havia jurado proteger.
   Vi minha mãe e minhas duas irmãs mais novas chorando. Queria ter dito algo para confortá-las, mas não consegui olhá-las de volta, não queria ver meu sofrimento refletido nos olhos delas. Não queria que enxergassem a minha dor.
    Saí de casa direto para a floresta, e me sentei na relva verde que ainda estava úmida por causa neblina. Respirei fundo o ar gelado daquela manhã de outono e vi a minha volta as árvores despidas e solitárias apesar de tão próximas umas das outras.
   Peguei uma de suas folhas do chão e a apertei em minha mão. Apertei com tanta força que sangue escorreu por ela até minha perna e o tecido fino permitiu que sentisse o calor de cada gota em minha pele, um calor que me fez perceber a grandiosidade do quanto estava sozinho.
   Queria poder voltar no tempo e ver meu pai me chamando para caçar. Com toda sua rispidez e voz forte. Ele era assim, um homem duro a maior parte das vezes, mas um homem bom. Capaz de ser gentil e de sorrir quando via sua família segura e saciada. Que trazia flores para a esposa amada e que ninava as filhas pequenas quando não conseguiam dormir.
   Sentia-me seguro quando o tinha por perto e meu maior desejo sempre fôra ser motivo de seu orgulho. E ao ouvir os sons da floresta, a imagem do garoto franzino e desajeitado tentando mostrar sua destreza com o arco, surgiu em minha mente, e foi impossível não se lembrar dele ali em pé naquele mesmo lugar me observando caçar. Lembranças essas que trouxeram a dor de volta. A dor de que eu não o veria e nem o teria ao meu lado.
   Sabia que era um mero plebeu, um camponês que possuía de seu apenas o ar em seus pulmões, mas agora estava decidido. Iria ser igual ao meu pai. Um homem de verdade.
   Passei a noite ali sobre as estrelas, mas sem derramar uma lágrima se quer e antes que os primeiros raios de sol surgissem no horizonte, eu já estava com meu arco em mãos, preparado para cumprir minha promessa e voltei para casa, arrastando um cervo que tinha pelo menos o triplo do meu peso.

   Os anos se passaram e cumpri meu juramento, mas a cada dia sentia mais meu coração ser tomado por um escudo de aço. Minha mãe dizia que eu devia me abrir para o amor. Ela achava que um rapaz de vinte e dois anos não devia passar todo o tempo na floresta como se fosse um animal.
   Meu cabelo comprido e minha barba sempre por fazer, não eram muito atrativos para as mulheres. E eu também não conseguia socializar com aquelas criaturinhas irritantes e sempre preocupadas em tentar acompanhar o estilo das damas da côrte. Todas supérfluas demais para valerem a pena. E eu já tinha uma família para sustentar, não precisava de outra boca à mesa.
   Naquela manhã fria tinha me levantado ainda antes do sol nascer. Peguei meu arco e as flechas afiadas que tinha feito no dia anterior e saltei de volta para a floresta. Precisava encontrar uma boa caça.
    O final do outono era um período infeliz para um caçador naquela região de Antéria, pois diferente das pessoas os animais podiam passar livremente para além das fronteiras e as melhoras caças estavam escolhendo a Antéria como lar. E como não podia fazer o mesmo, tinha que me contentar com o pouco que conseguia. Já estava a dois dias me alimentando apenas com o tutano dos ossos de um pequeno porco do mato que tinha conseguido.
   A beira do rio Emor, fiz barro usando a terra escura de seu leito para cobrir todo meu corpo. Segui todo o meu ritual diário e ao perceber que estava ventando para o sul, me posicionei contra o vento para que nenhuma presa me sentisse chegar. Mas parecia que a sorte estava a meu favor. Notei uma trilha de sangue pouco a minha frente. Provavelmente um animal ferido. Segui a trilha até ver fios cor de fogo balançando ao vento. Aquele não era um animal. Era humano. Era uma mulher.
   – O que faz aqui? – perguntei a ela.
   – Estava caçando! – retrucou com um olhar ígneo e feroz.
   – Não deveria estar aqui! Caçar não é para mulheres, é perigoso demais – respondi a observando.
   – Então vá embora! – disse dando um passo, mas caiu logo em seguida.
   – Você se tornará uma presa fácil para qualquer animal. Precisa cuidar dessa ferida, primeiro – disse enquanto me aproximava.
   – Posso fazer isso sozinha! – gemeu tentando novamente se levantar.
   Ignorei tudo que ela dizia e rasguei a barra de seu vestido, fazendo um torniquete em seu tornozelo.
   – Você fede! – disse ela tapando o nariz.
   – Você também não cheira a rosas e... na verdade nem se parece uma garota, muito menos uma caçadora – continuei tentando ignorar seu comentário.
   Ela engoliu seco e se afastou, como se tivesse se ressentido com as minhas palavras.
   – Preciso alimentar minhas irmãs, pois não há ninguém para fazer isso por mim – disse ainda de costas para mim. – Posso não parecer uma dama da côrte, mas não deixarei que morram de fome.
   Pensei em abandoná-la ali mesmo, mas como poderia ignorar suas palavras?
   Eu sabia que o rei não se preocupava com o povo e que muitos passavam fome, mas nunca tinha parado para pensar nas outras famílias, e ao refletir sobre isso acabei percebendo que talvez eu pudesse ignorar o quanto ela era irritante.
   – Posso ajuda-la, mas não quero ouvi-la.
   – Tudo bem – respondeu rispidamente e começou a me seguir ainda com dificuldade.
   Mostrei-lhe esmigalhando folhas ao ar como sabíamos exatamente a direção do vento. Encontrei uma pequena poça de lama que ainda estava fresca e ajudei-a a passar por seu corpo.
   Ela parecia frágil, porém determinada e a cada pequeno acerto eu me sentia estranhamente feliz. Como se pudesse passar a frente os ensinamentos de meu pai.
   Quando percebi que ela estava mais confortável com a situação, permiti que segurasse o arco, mas ela queria parecer melhor do que realmente era e rapidamente pegou uma das flechas. Avistamos de longe algumas lebres brincando por entre as folhas secas caídas no chão. Posicionei-me por detrás dela mostrando-lhe como sentir o alvo antes de ataca-lo.
   Nunca tinha ficado tão próximo a uma mulher antes e mesmo com seu pescoço sujo pela lama, conseguia ver frações de uma pele clara e aveludada, e sua cintura era tão fina que tive medo de tocá-la. Medo que fosse quebrar. Então apoiei minha mão esquerda em suas costas e desci até o limite da cintura. Ela se endireitou em resposta ao meu toque, mas continuou concentrada nas lebres a nossa frente.
   – Esqueça tudo ao seu redor, seja a flecha, vá até seu alvo com ela – sussurrei em seu ouvido – Sinta o vento, deixe que ele faça parte de você e quando se sentir pronta, atire.
   Assim que terminei de falar ela atirou a flecha e acertou o pescoço da lebre. Corremos até lá e ela sorriu pela primeira vez enquanto retirava a flecha do pescoço da criatura ensanguentada. Ela não parecia enojada ou assustada. Talvez com um pouco de pena, mas me surpreendeu vê-la tão à vontade.
   Fomos à busca de outros animais e no final do dia já tínhamos dois porcos do mato e três lebres. E isso era muito mais do que tinha conseguido na semana inteira.
   Levamos as nossas caças para a beira do rio, lavamos as lebres e enquanto acendia a fogueira disse a ela que pouco acima de onde estávamos havia uma pequena caverna, onde ela poderia se banhar em seu interior em uma pequena fonte termal formado por entre as rochas e tirar toda a lama. Ela assentiu com a cabeça e saiu.
   Limpei uma das lebres e a deixei sobre as brasas para assar e depois subi para a caverna também, mas ao chegar tive uma visão divina. Os raios de sol do final do dia refletiam sobre ela como se a água estivesse em chamas. Suas formas sobre a água eram de uma beleza quase angelical.
   Ela se virou para mim com aqueles olhos cor de âmbar e sorriu inocentemente. Eu fiquei paralisado com aquela visão. Era como se toda a beleza do mundo tivesse sido condensada naquele pequeno instante, naquele ser tão delicado.

A HerdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora