Saciadas

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Antéria,


3 de Dezembro de 1546


Sarah Turner







Não haviam palavras suficientes para descrever o quanto estava orgulhosa de mim mesma. Não me lembrava de quando tinha me sentido assim na vida. Era a primeira vez que eu enfrentava meus medos e tinha gostado disso.


Sentia-me deveras revigorada por saber que eu poderia fazer algo para aplacar o sofrimento dos que eu amava e apesar de tudo, também estava grata pela ajuda do caçador. Ele não era nem de longe um príncipe, mas do seu jeito turrão e grosseiro tinha sido o único a me ajudar de verdade e mesmo quando me mandou embora dizendo que não me queria mais por ali, eu parti ressentida, porém feliz, afinal minha família saciaria sua fome.


Caminhei pela floresta me agarrando a caça, talvez em uma tentativa vã de me aquecer, já que o vento passava por mim como se estivesse carregado de espinhos, sentia-o cortar minha pele a cada passo que eu dava.


As horas haviam se tornado um mistério para mim, pois de repente o céu ficou cinzento, como se a noite estivesse prestes a cair. Senti uma mistura de frio e medo correr por minhas veias, até que o quebrar de um galho quase me fez gritar.


Era o caçador vindo em minha direção e eu não fazia ideia do que esperar.


Ele me alertou sobre a tempestade, mas como eu poderia seguir em direção contrária enquanto minhas irmãs passavam fome?


Levei algum tempo até aceitar o fato de que ele estava certo e que me arriscar por uma tempestade não ajudaria em nada. Tomei minha decisão e o segui para sua casa.


Coloquei minha capa e cobri ao máximo meu rosto. Eu não queria ser vista acompanhada de um homem e ainda mais indo sozinha para sua casa.


Não que tivesse esperança de me casar. Eu já tinha dezessete anos, boa parte das garotas da minha idade já tinham sido cortejadas, mas eu não era atraente para os homens, era muito magra e sem dote algum para oferecer. Já tinha perdido as esperanças, porém tinha que manter minha honra por minhas irmãs mais novas, tendo em vista que elas ainda poderiam ter um futuro.


Ao chegarmos na casa que ele construíra na árvore, eu subi sem dificuldades, só queria sair daquele frio.


Ele por sua vez, foi até a casa onde sua família se abrigava. Ela era pequena como a minha, mas sua mãe e irmãs pareciam fortes e saudáveis. E ao vê-lo com elas, senti um pouco mais de simpatia por ele.


Elas pareciam venerá-lo, mas mesmo recebendo tanto amor, só o vi sorrir uma única vez. E sorriu para uma garotinha que devia ter a idade de minha irmã Nancy. Um sorriso que não durou mais que uma fração de segundos, mas que o tornou bem mais humano para mim. Ele não parecia tão assustador abraçado à aquela criança, mas assim que ele saiu da casa eu me escondi, não queria que percebesse que eu o estava espionando.


Sentei-me longe da pequena janela e pouco depois ele adentrou, jogando sobre mim um velho cobertor que exalava um cheiro bom. Não o cheiro que senti na floresta quando o conheci, mas um cheiro amadeirado e reconfortante.


Ele se recostou debaixo da janela, com seu arco e flecha em mãos como se estivesse pronto para caçar ou como se pudéssemos ser atacados a qualquer momento.


Fiquei espantada ao saber que ele ficava todas as noites de vigia, sempre a espreita, sempre preparado para manter sua família segura. Por um momento desejei que meu pai tivesse o mesmo zelo ou que existisse a possibilidade de encontrar um marido que se dispusesse a me proteger de maneira tão fervorosa.


Sim! O homem que tanto me irritou, e que me salvou, não era apenas o caçador, ele se chamava Lucius.


Adormeci me sentindo segura e sonhando com coisas que nunca teria: Um lar quente e seguro, comida sempre a mesa e alguém que realmente se importasse. Eis meu maior desejo!


Meus doces sonhos foram abruptamente interrompidos por um toque gelado. Acordei assustada, mas nada que resistisse ao aroma da manhã após um dia chuvoso. Estava frio, muito frio, mas logo eu estaria em casa e minhas irmãs se saciariam. O que poderia me alegrar mais?


Porém num minuto estava discutindo com ele e no outro, presa em seu corpo, atrás de uma árvore, com bandidos da pior espécie há apenas alguns metros de nós.


Fui salva mais uma vez e quando imaginei que poderia pelo menos agradecer, minha prima Clarissa o tratou como um cortezão, como se fosse um mero aproveitador. Senti tanta vergonha por retribuir tudo que ele havia feito por mim e por minha família com uma recepção tão imprópria.


Segui Clarissa de volta para casa, mas minha vontade era confrontá-la, dizer o quanto tinha sido ridícula e desrespeitosa, mas apesar de termos quase a mesma idade, ela não passava de uma criança mimada e eu havia pegado a capa de sua mãe. Por ora eu poderia relevar.


Por diversas vezes tive vontade de expulsá-la de minha casa, mas ela talvez fosse assim por ter perdido tudo. Não saberia dizer como eu seria se também não tivesse ninguém, pois apesar dos pesares minha mãe havia me amado e me protegido. Não tínhamos posses, mas não nos faltava amor.


Sempre usei isso como base para justificar o comportamento dela e talvez por sempre agir assim tenha contribuído para criação de um monstro, mas algo me dizia que nossa relação estava prestes a mudar.


Preparei o almoço. Tínhamos carne e vi minhas irmãs comendo como selvagens. Era engraçado ver Nancy discutindo com Beca por uma das coxas da lebre.


Elas me lembravam tanto minha mãe. Eram loiras como ela, mas tinham os olhos verdes de nosso pai. Sabia que bem alimentadas se tornariam mulheres atraentes e na idade certa poderiam arranjar bons casamentos.


- Não vai me contar nada sobre o caçador? - perguntou Clarissa sentando-se ao meu lado.


- Não tenho nada para contar - respondi dando as costas para ela.


- Gostei dele, acho faríamos um bom par. - gargalhou para me provocar.


- Tu és ainda uma criança Clarissa!


- Há mulheres na aldeia e até no castelo que já são mães com menos idade que eu, algumas sem nem mesmo serem casadas - e sorriu novamente.


- Não somos como elas! E tu que tanto se gaba de ter sangue real, deverias valorizar ainda mais sua honra!


- Minhas flores não devem brig... - Nos interrompeu meu pai pouco antes de vomitar na nossa frente.


Clarissa saiu enojada, enquanto eu o limpava e o colocava de volta na cama.


O chão fedia a vinho. Minhas irmãs vieram ajudar e apesar da situação estávamos felizes e com nossas barrigas cheias e em um mundo tão cruel para nós mulheres, o que poderia ser melhor do que isso?



A HerdeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora