Delírio

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Antéria
07 de Dezembro de 1546
Sarah Turner



      Meu pé nunca mais foi o mesmo depois do acidente na floresta. Tentei reproduzir por inúmeras vezes o curativo feito por Lucius, mas não obtive muito sucesso.

  Sempre enrolava um pedaço de algum vestido velho e calçava por cima uma botina de meu pai. Não era nada charmoso, mas me aquecia e a barra do vestido servia para camuflar que a botina era bem maior que o meu pé. 

  Mas naqueles últimos dias, comecei a notar que o corte estava estranho, ainda mais dolorido e latejante, porém mesmo assim decidi dar a diversão que minhas irmãs precisavam e as levei para brincar na clareira. O dia não estava tão frio, então sabia que nossos velhos agasalhos seriam suficientes.

  Foi incrivelmente divertido, apesar da dor. Fiz o possível para não tocar o chão, mas mesmo mancando não deixei que percebessem que não estava me sentindo bem, porém toda dor se foi para um canto esquecido de minha mente quando avistei Nancy conversando com Lucius. Ainda não acreditava que era ele ali tão próximo a nós.

  Nem mesmo minhas irmãzinhas engoliram a história de caçar faisões próximos a clareira e tão longe da área real onde eles eram costumeiramente vistos sobrevoando.

  Tentei encarar tudo aquilo como uma desculpa para me ver e não poderia existir felicidade maior que pensar que isso poderia ser possível.

  Tive vontade de beijar Beca quando ela teve a coragem que me faltou e o chamou para brincar conosco. E para minha maior surpresa e contentamento, ele tinha aceitado e foi maravilhoso vê-lo sorrindo, vê-lo tão relaxado.

  Quando caí sobre ele, imaginei que seria repelida, mas ele sorriu e mesmo tendo que ir embora me convidou para ir a Floresta Real.

  É claro que tentei disfarçar minha empolgação com a ideia, mas por dentro estava gritando.

  Voltei para casa mancando, porém feliz e cheia de planos, os quais foram nublados pelas dores e pelo frio que senti cada vez mais intensos quando entrei em casa, mas não queria preocupar as meninas, então simplesmente disse que estava sentindo dor no corpo, o que poderia ser facilmente atribuído ao dia divertido, porém exaustivo que tivemos e me deitei, puxando sobre mim o meu velho cobertor.

  A dor aumentou ainda mais enquanto sentia o frio entrar por todos os meus ossos, até que tudo escureceu e não consegui mais pensar com clareza.

  Era como se estivesse deitada nua sobre a neve. Doía todos os meus ossos e o suor gelado transformou minha cama em um lago. 

  Eu conseguia ouvir de longe as vozes de Nancy e de Beca, mas era como se algo estivesse puxando minha consciência para longe. Para um novo universo. 

  Lucius apareceu como uma luz na escuridão e me levou para a colina. Era verão e não inverno. O sol brilhava acima das nuvens formando um espetáculo de cores.

  Sentei-me na grama macia e ele sorriu para mim.

  Aquele sorriso conseguia ser mais belo que os raios do sol e me aqueceu tanto quanto eles. 

  Lucius pegou minha mão e a manteve entre as suas fazendo um leve carinho. Eu podia sentir seus calos, mas nada que incomodasse. 

  Recostei-me em seu peito e seu cheiro amadeirado inundou meus sentidos. Não estava mais sentindo dor e ao olhar para os meus pés descalços, não havia nenhuma ferida. 

  Queria ouvi-lo, mas tinha medo de estragar aquele momento com palavras.

  Caminhamos abraçados por entre o bosque, até a entrada da Floresta Real. Podia ouvir o canto dos pássaros, mas não havia outra presença humana além da nossa. 

  Aquele lugar era ainda mais bonito do que imaginava ser possível. Só então me dei conta de que tudo aquilo não era real. Me dei conta de que estava sonhando. 

  O céu escureceu repentinamente e a neve cobriu em instantes tudo que outrora cintilava em um verde vivo e brilhante. Lúcios não segurava mais a minha mão, ele estava se afastando, era como se o vento o estivesse levando para longe de mim, mas quando voltei a atenção para minha frente, vi o túmulo de minha mãe e de minha irmãzinha.  

  Era como estar presa dentro dos meus próprios medos. Gritei por elas, as queria de volta. Minha mãe por seus conselhos, por seu carinho e por sua estabilidade. À minha irmãzinha por sua doçura e inocência. Todas perdidas para o sono da morte. 

  Um buraco imenso se abriu em mim. Todo meu corpo doía enquanto eu abraçava meus joelhos deitada naquele berço de neve. 

  – Lúcios, Lúcios, Lúcios... – minha voz fraca clamava por ele. 

  Eu queria seu calor e sua segurança. Queria ouvir sua voz. 

  Lucius, Lucius, Lucius – Clamei nas profundezas do meu desespero. 

  Eu estava caindo dentro de mim mesma. Dentro dos meus medos e frustrações. Eu estava morrendo e a dor e o frio apenas inundavam minha mente com o rosto dele 

  – Lucius, Lucius, Lucius... 

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⏰ Última atualização: Oct 10, 2018 ⏰

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