03 de março 00h45

14 0 0
                                    


O suor escorria pelo seu rosto. Ela achava que era o calor daquela cidade infernal, mas a verdade era bem mais profunda e difícil de ser compartilhada com alguém. Laura andava ouvindo vozes. O que não era nenhuma novidade, na verdade. Porém fazia um tempo que isso não acontecia. Os vários atestados médicos que ela acumulava diziam ser transtorno do estresse pós-traumático. Entendível, diante de tudo que ela tinha passado. Mas, o que os médicos (e mais ninguém) sabiam era que Laura já ouvia essas vozes muito antes de ter passado por tudo aquilo.

Desde criança, as vozes estavam lá. Às vezes fortes, às vezes somente sussurros. Elas não eram más, por isso Laura nunca julgou que mereciam cuidado. As vozes não pediam que ela fizesse coisas cruéis, nem nada disso. Apenas diziam em quem ela devia ou não confiar. Quase como um sexto sentido falante. Algo que já havia ajudado a delegada em muitos casos. Então, por que se importar com elas?

Agora não era diferente.

Laura decidiu se levantar da cama. Não tinha mais nada para ela lá. Nem sonhos, nem pesadelos, nem nada. As vozes estavam gritando na sua cabeça e quando isso acontecia era melhor não brigar com as suas amigas. As conversar com Mário e todas as coisas estranhas que andavam acontecendo nos últimos dias ajudaram a despertar o monstro interno.

A voz lembrava a Laura que todos (sem exceção) eram suspeitos em potencial. Todos, até ela? "Todos, até você".

Um frio na espinha abraçou a delegada, que resolveu dar uma volta pela casa deserta. Não pretendia trabalhar, mas quando deu por si estava de novo analisando as suas anotações do caso. Todos são suspeitos, diziam as vozes.

Por que Jurandir mataria a própria filha? Ainda que tivesse segredos (e Laura sabia que ele tinha), como a criança se ligaria a isso? E Jurandir conseguiria citar a Bíblia com tanta desenvoltura?

Padre Milton por sua vez tinha a fé, os conhecimentos e a oratória a seu favor. Poderia estar matando apenas para culpá-la e expulsá-la da cidade? Seu ódio era assim tão grande? Ou o problema dele era com uma mulher no poder? O padreco era bem misterioso, mas seria capaz de matar não só uma vez? Qual prazer sentia nisso?

Paulo, o jornalista, não parecia assassino. No máximo do bom português. Mas Laura não sabia muito do seu passado e nem do tempo que passou fora. Como um jornalista pode ganhar tanto dinheiro para recomprar o jornal da família? De qualquer forma, ele não parecia tão suspeito para Laura.

Diferente do seu amigo policial, Alexandre. Quieto e prestativo, mas amargurado com Padre Milton e com a Igreja. Poderia isso ter lhe causado algum problema mais profundo, transformando as mortes em uma válvula de Escape? Quais segredos Alexandre poderia guardar por trás daquele perfil sempre centrado?

Ela própria seria de confiança se resolvessem analisá-la assim? Ouvindo vozes, tendo um passado conturbado, fugindo da capital. Provavelmente fosse a suspeita mais forte. Será que havia algo acontecendo e Laura não conseguia sequer se lembrar? Ou seria o seu passado voltando para lhe assombrar?

Tentou pensar na vitimologia. Qual a ligação entre as vítimas? Não parecia haver nenhum traço físico que as unisse. Uma jovem e uma criança. O que o assassino poderia querer com esses pedaços de corpos levados? Por que estrangular as vítimas? Poderia ser um desejo sexual, mas não havia nada que comprovasse esse indício no corpo das meninas.

Duas meninas. Cada qual com seu futuro pela frente. Não conviviam, não eram próximas, não tinham nenhuma ligação. Onde ele poderia tê-las encontrado? O único lugar que unia todas as pessoas daquela cidade miserável: a igreja.

Tudo levava à igreja. Eram cartas ameaçadoras com passagens bíblicas, era um padre fofoqueiro que a queria longe, eram carolas fervorosas que faziam vigília na frente da delegacia (e deixavam Laura com medo com aquelas rezas infindáveis). Será que ela estava sendo possuída e nem sabia?

Mesmo que o problema em questão fosse o seu passado, nada disso fazia sentido. Esse não era o seu modus operandi, nem de nenhum outro que ela tivesse visto. E aquelas marcas a ferro?

Laura achava que, se conseguisse desvendar o motivo, ficaria mais fácil pensar no culpado. As partes levadas poderiam ser lembranças do assassinato, claro, mas eram específicas demais para isso. Ela voltou a analisar a carta misteriosa:

"Eis que envio um Anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Respeita a sua presença e observa a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o Meu Nome. Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que te disser, então serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários". (Ex 23,20-22).

Um anjo. Seria o próprio agressor? Seriam as vítimas? Como os pedaços de corpos podem fazer parte disso?

"Todos são culpados e a sua culpa é ainda maior. Você trouxe o mal para a cidade e é amaldiçoada eternamente".

A voz gritava dentro da cabeça de Laura e ela começava a acreditar em tudo aquilo. Seria ela a culpada? Seria ela o Anjo enviado para transformar a Terra no próprio Inferno? O que ela estava perdendo? O que não via? O que andava fazendo enquanto pensava estar dormindo?

O medo voltou forte como um gosto metálico de náusea à boca da delegada. Laura se sentou na sua varanda dos sonhos, mas somente foi capaz de sentir como se estivesse presa em um pesadelo sem fim, ou em uma história de mal gosto de Stephen King. O problema é que ela era a personagem esquisita e que fazia todos se cagarem de medo.

Respirou fundo aquele ar pesado e quente e desejou ter enfrentado a morte novamente a estar naquela posição. Sua cabeça rodava e ela sentia não pertencer a si mesma. Talvez fosse hora de retornar com os medicamentos para o tal estresse pós- traumático. Ou assumir que ela não era a mais qualificada para aquele trabalho ingrato. Talvez começasse a vender bolos na praça. O problema é que ela não sabia nem fritar um ovo e jamais tinha comprado sequer uma batedeira. A noite estava mesmo desoladora.

O Anjo de LaranjalOnde histórias criam vida. Descubra agora