22 de fevereiro

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22 de fevereiro 00h43

Laura acordou assustada, tremendo e suando frio. Sentou-se na cama e olhou ao redor, sem saber exatamente onde estava. Pegou o celular ao lado da cama para checar o horário, sentia-se exausta, parecia não ter dormido mais do que dez minutos. Ao pegar o aparelho, reparou que suas unhas estavam sujas. Acendeu o abajur para analisar melhor. Seus pés também estavam sujos, como se tivesse percorrido um grande trecho a pé. Sangue e mato se encontravam nas suas solas. O que está acontecendo comigo? Se perguntava a delegada enquanto tomava uma ducha fria. Os recentes acontecimentos ainda rondavam a sua mente inquieta. Parecia não ser capaz de esquecer a expressão na face da pequena Catarina. E aquelas órbitas vazias ainda pareciam fitá-la, como lembrando da sua responsabilidade.

Quem poderia ter lhe deixado aquele bilhete? E aquelas expressões religiosas... Seria uma evidência real, ou apenas uma tentativa de assustá-la? Seria um recado do assassino, ou do Padre Milton? Ou ainda de algum outro fanático qualquer? Seria capaz o Padre de proferir aqueles crimes? E, por que, ela estava toda suja deitada na sua cama? Onde estivera? Por que não se lembrava e por que estava tão exausta? Sua cabeça rodava e seus pés doíam. O que estava acontecendo em sua vida, afinal? Será que havia sido drogada? Ou será que ela mesma havia exagerado nos remédios para dormir e sequer se lembrava?

Uma ânsia lhe invadia o corpo dolorido. Vomitava, sem parar. Como se, ao se livrar do que restava no estômago, se livrasse também de todo aquele pesadelo. A cabeça pesada girava e Laura confundia o passado com o presente. Será que ele estava voltando? Será que nunca foi preso, apenas disseram isso para lhe acalmar? Sempre tivera essas suspeitas. Quando foi afastada por uns meses da Polícia não teve acesso ao resto da investigação. E se, agora, ao invés de colecionar ossos ele colecionasse pedaços de corpo? Mas ele nunca fora religioso... Seria apenas uma cruel coincidência ou ela era amaldiçoada, capaz de atrair para uma cidade pacata um serial killer violento e psicopata? Tudo parecia voltar e a delegada tinha medo. Mas não podia demonstrar sua fraqueza, a segurança daquela cidade dependia dela... E, por Deus, ele estava matando crianças! Ela era a única ali que não podia ter medo, mas ela, também, era só uma mulher que sofrera muito e queria um pouco de paz e refúgio em uma casa linda com varanda e um amplo jardim. Mas, ao invés disso, ela encontrava sangue, mortes, mensagens bíblicas e crianças sem olhos ou sem cabelos... Certamente, era amaldiçoada! Pensava com a cabeça enfiada na privada, vomitando alguns litros de um líquido amarelo e ácido.

Sem data

Tão linda e tão pura, assim você ficará, porque nascerá das minhas mãos e caminhará sobre a Terra, levando os infiéis consigo. Com seus olhos doces, encantará até os descrentes e pelo seu rosto plácido a bondade será revelada. Todos terão que se arrepender dos seus pecados e somente os puros serão dignos de me acompanhar: quando eu reouver minhas asas ascenderei aos céus, levando comigo um rebanho de corações puros, e você, minha santa, operará os milagres nunca antes visto. Seu rosto, já posso imaginá-lo, um lindo e belo rosto substituirá esse improviso maltrapilho. O anjo e a santa, assim será feita a vontade Dele, e eu o aceitarei novamente como meu Pai, porque agora, vendo-a, me acalmo e me deleito com meus poderes de auxiliar a humanidade. Enfim, compreendo minha missão e persisto. Ninguém poderá me deter... Mas ainda há tantos infiéis para arrebanhar, tantos pecados a serem confessados... Há tanto trabalho até retornar. Estou exausto, mas não posso desistir, finalmente estou perto o suficiente, após anos.

22 de fevereiro 09h15

A calmaria da casa paroquial foi quebrada por barulhos de sirene. Quem estaria invadindo o seu espaço de forma tão brutal? Mas, será possível, que essa polícia maltrapilha e mal educada não pode sequer respeitar a manhã de um padre?

Abrindo a porta, com o café quente na mão e meio sonolento, o Padre Mílton reconheceu Alexandre de longe. Aquela cara de esquilo era reconhecível a quilômetros de distância.

- Pois não? – dizia com uma educação forçada.

- Precisamos levá-lo até a delegacia, senhor- dizia o soldado Alexandre, em dúvida sobre que título usar com Padre Mílton.

- Mas o que está acontecendo? Aquela Delegadazinha está precisando de algumas orações? – revirava os olhos irônico para tudo aquilo.

- Por enquanto, estamos apenas fazendo um convite, senhor. Precisamos esclarecer alguns pontos da investigação.

- Mas eu já dei meu depoimento. Estava lá porque um dos meus fiéis me informou sobre o corpo. Por isso cheguei antes de vocês... Já lhe informei tudo isso, não foi, meu filho? – sorria como um cordeirinho.

- Não sou seu filho, mesmo porque nossa diferença de idade não permitiria isso. E o assunto em questão não está diretamente relacionado ao seu depoimento. Como disse, no momento é apenas uma solicitação. Mas se o senhor preferir posso voltar com um mandato. – com uma voz grossa e muito incomum, o soldado Alexandre mostrou que de esquilo tinha só a cara e que não daria trela para padreco nenhum. Mesmo porque ele era espírita e já estava de saco cheio desse Milton intervindo no seu Centro e impedindo suas boas ações. Até esquilos às vezes perdem a paciência.

- Claro, claro, meu filho, digo, policial. Estou aqui para ajudar a cidade a resolver seus problemas, como um bom cordeiro de Deus- engolindo o café, padre Milton deixou a pequena xícara sobre a mesa, informou Cilene, quem cuidava da casa paroquial e acompanhou os policiais.

Ver um padre enfiado em uma viatura não era uma cena muito comum em Laranjal e isso preocupou Milton. Já sabia que teria muito sermão e histórias para reverter aquele quadro. Seus ouvidos zuniam só de imaginar os comentários sobre a cena.

Alexandre e Vieira (quem dirigia a viatura) também sabiam que essa cena seria algo de remexer ainda mais a tradicional cidadeca. Por isso mesmo, nada melhor que um belo passeio pelo centro da cidade e um pequeno desvio de 3 km da rota. Laura aprovaria, com certeza. Talvez isso até melhorasse os ânimos da delegada, que andava ainda mais cheia dos palavrões. Não era um momento bom para a polícia local e todos sentiam que a sua chefia poderia mudar. Mas os poucos policiais do batalhão confiavam em Laura.

É claro que no início as coisas não foram muito boas. Ser comandados por uma mulher era evidentemente uma droga. Ainda mais uma mulher da capital, que deveria ser cheia de frescuras e idiotices, julgando-os como um bando de caipiras despreparados.

Mas Laura era diferente. Durona como um homem, encarava qualquer situação sem balançar. E atenciosa como uma mulher, capaz de ouvir seus subordinados, fazê-los sentirem-se importantes. Antes da delegada, aquele amontoado de polícia era um bando desordenado de caos e imprecisão. Depois de Laura eles agiam com amor ao distintivo, como se Laranjal fosse o local mais seguro do mundo pelo bom desempenho de seus policiais, pelo menos até aqueles fatos todos começarem a acontecer... Mas, mesmo assim, todos confiavam cegamente nos passos da Delegada, principalmente Alexandre, que sempre sentia as mãos suadas ao ficar sozinho com Laura.

O Anjo de LaranjalOnde histórias criam vida. Descubra agora