Um mês depois de chegar Estevão a São Paulo, achava-se a sua paixão
definitivamente morta e enterrada, cantando ele mesmo um responso, a vozes
alternadas, com duas ou três moças da capital, - todas elas, por passatempo.
Claro é que dois anos depois, quando tomou o grau de bacharel, nenhuma idéia
lhe restava do namoro da Rua dos Inválidos. Demais, a bela Guiomar desde
muito tempo deixara o colégio e fora morar com a madrinha. Já ele a não vira da
primeira vez que veio à Corte. Agora voltava graduado em ciências jurídicas e
sociais, como ficou dito, mais desejoso de devassar o futuro que de reler o
passado.
A Corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que
transpuseram a linha dos Cinqüenta divertia-se mais do que hoje, eterno reparo
dos que já não dão à vida toda a flor dos seus primeiros anos. Para os varões
maduros, nunca a mocidade folga como no tempo deles, o que é natural dizer,
porque cada homem vê as coisas com os olhos da sua idade. Os recreios da
juventude não são decerto igualmente nobres, nem igualmente frívolos, em todos
os tempos; mas a culpa ou o merecimento não é dela, - a pobre juventude, - é
sim do tempo que lhe cai em sorte.
A Corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -; bailava-se,
cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os seus salões, como
os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três fluminenses no nome e
na alma. Eram os tempos homéricos do teatro lírico, a quadra memorável
daquelas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez por um excesso
de ardor e entusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu, - Deus lhe perdoe,
- a coisas de menor tomo. Quem se não lembra, - ou quem não ouviu falar das
batalhas feridas naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião
casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento
lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, - e maduras também, -
apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de estalinhos. Uma noite a
ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo chartonista, com tal violência,
que parecia uma página da Ilíada. Desta vez, a Vênus da situação saiu ferida do
combate; um estalo rebentara no rosto de Charton. O furor, o delírio, a confusão
foram indescritíveis; o aplauso e pateada deram-se as mãos, - e os pés. A peleja
passou aos jornais. "Vergonha eterna (dizia um) aos cavalheiros que cuspiram na
face de uma dama!" - "Se for mister (replicava outro) daremos os nomes dos
aristarcos que no saguão do teatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua!" - "Patuléia
desenfreada!" - "Fidalguice balofa!"
Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir hoje,
após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em coisas que
pediam repouso de espírito e lição de gosto.
Estevão é uma das relíquias daquela Tróia, e foi um dos mais fervorosos
lagruístas, antes e depois do grau. A causa principal das suas preferências, era
decerto o talento da cantora; mas a que ele costumava dar, nas horas de bom
humor, que eram todas as vinte e quatro do dia, tirantes as do sono, essa causa
que mais que tudo o ligava aos "arraiais do bom gosto" dizia ele, era, -
imaginem lá, - era o buço de Mlle. Lagrua. Talvez não fosse ele o único amador
do buço; mas outro mais férvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um
chartonista maquiavélico, aliás escritor elegante, elevava o tal buço à categoria
de bigode, compreendendo sagazmente que, se o buço era graça, o bigode era
excrescência; e ele nem ao lábio da Lagrua queria perdoar.
- Oh! aquele buço! exclamava Estevão nos intervalos de uma ópera, aquele
delicioso buço há de ser a perdição da gente de bem! Quem me dera ir
encaracolado por ali acima, até ficar mais próximo do céu, quero dizer dos seus
olhos, e ser visto por ela, que me não descobre na turba inumerável dos seus
adoradores! Querem saber uma coisa? Ali é que ela há de ter a alma, e eu
quisera entreter-me com a alma dela, e dizer-lhe muita coisinha que tenho cá
dentro à espera de um buço que as queira ouvir.
Estevão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha
cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor, aliando
em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a dignidade do
outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de coração; só não as
mostrara nos versos que imprimiu em jornais acadêmicos, os quais eram todos
repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. Neles confessava o
rapaz à cidade e ao mundo a profunda incredulidade do seu espírito, e o seu
fastio puramente literário. A colação de grau interrompeu, ou talvez acabou,
aquela vocação poética; o último suspiro desse gênero que lhe saiu do peito
foram umas sextilhas à sua juventude perdida. Felizmente, que só a perdeu em
verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos.
Posto fizesse boa figura na academia, mais prezava do que amava a ciência do
direito. Suas preferências intelectuais dividiam-se, ou antes abrangiam a política
e a literatura, e ainda assim, a política só lhe acenava com o que podia haver
literário nela. Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e à flor das
páginas. Estevão não compreenderia nunca este axioma de lorde Macaulay - que
mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e
daí vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância
por amor-próprio; mas, uma vez dobrado o Cabo das Tormentas disciplinares,
deixou a outros o cuidado de aproar à Índia.
Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em gérmen, não só porque
lhe minguava o apoio necessário para as arvorecer e frutificar, mas ainda porque
ele não tinha em si a força indispensável a todo o homem que põe a mira acima
do estado em que nasceu. Eram aspirações vagas, intermitentes, vaporosas,
umas visões legislativas e ministeriais, que tão depressa lhe namoravam a
imaginação, como logo se esvaeciam, ao resvalar dos primeiros olhos bonitos,
que esses, sim, amava-os ele deveras. Opiniões não as tinha; alguns escritos que
publicara durante a quadra acadêmica eram um complexo de doutrinas de toda a
casta, que lhe flutuavam no espírito, sem se fixarem nunca, indo e vindo,
alçando-se ou descendo, conforme a recente leitura ou a atual disposição de
espírito.
Por agora militava nas fileiras do lagruísmo, com ardor, dedicação e fidelidade de
bom apóstolo. Não era abastado para pagar o luxo de uma opinião lírica; nascera
pobre e não tinha parente em boa posição. Alguns poucos recursos possuía,
provenientes do seu ofício de advogado, que exercia com o amigo Luís Alves.
Uma noite assistira à representação de Otelo, palmeando até romper as luvas,
aclamando até cansar-lhe a voz, mas acabando a noite satisfeito dos seus e de si.
Terminado o espetáculo, foi ele, segundo costumava, assistir à saída das
senhoras, uma procissão de rendas, e sedas, e leques, e véus, e diamantes, e
olhos de todas as cores e linguagens. Estevão era pontual nessas ocasiões de
espera, e raro deixava de ser o último que saía. Tinha agora os olhos pregados
em outros olhos, não pardos como os dele, mas azuis, de um azul-ferrete,
infelizmente uns olhos casados, quando sentiu alguém bater-lhe no ombro, e
dizer-lhe baixinho estas palavras:
- Larga o pinto, que é das almas.
Estevão voltou-se.
- Ah! és tu! disse ele vendo Luís Alves. Quando chegaste?
- Hoje mesmo, respondeu o colega; venho sequioso de música. Vassouras não
tem Lagrua nem Otelo...
- Vieste lavar a alma da poeira do caminho, disse Estevão, que, ainda falando
em prosa, cultivava as suas metáforas poéticas. Fizeste bem; não te perdoaria se
preferisses a outra, a lambisgóia, que aqui nos querem impingir por grande coisa,
e que não chega aos calcanhares do buço...
Interrompeu-se. Luís Alves acabava de cumprimentar cerimoniosamente alguém
que passava; Estevão volveu a cabeça para ver quem era. Era uma moça, que ele
não chegou a ver, porque já descia as escadas; mas tão elegante e gentil que os
olhos lhe fuzilaram de admiração.
- Algum namoro? perguntou ao amigo.
- Não; uma vizinha.
A desfilada acabou; saíram os dois e foram dali cear a um hotel, seguindo depois
para Botafogo, onde morava Luís Alves, desde que perdera a mãe, alguns meses
antes.
A casa de Luís Alves ficava quase no fim da praia de Botafogo, tendo ao lado
direito outra casa, muito maior e de aparência rica. A noite estava bela, como as
mais belas noites daquele arrabalde. Havia luar, céu límpido, infinidade de
estrelas e a vaga a bater molemente na praia, todo o material, em suma, de uma
boa composição poética, em vinte estrofes pelo menos, obrigada a rima rica, com
alguns esdrúxulos rebuscados nos dicionários. Estevão poetou, mas poetou em
prosa, com um entusiasmo legítimo e sincero. Luís Alves, menos propenso às
coisas belas, preferia a mais útil de todas naquela ocasião, que era ir dormir. Não
o conseguiu sem ouvir ao hóspede tudo quanto ele pensava acerca daquele
"pinto, que era das almas", aqueles olhos azuis, "profundos como o céu",
exclamava Estevão.
Afinal dormiram ambos; mas, ou fosse porque os tais olhos o perseguissem,
ainda em sonhos, ou porque estranhasse a cama, ou porque o destino assim o
resolvera, a verdade é que Estevão dormiu pouco, e, coisa rara, acordou logo
depois de aparecer a arraiada.
A manhã estava fresca e serena; era tudo silêncio, mal quebrado pelo bater do
mar e pelo chilrear dos passarinhos nas chácaras da vizinhança. Estevão, amuado
por não poder conciliar o sono, resolvera-se a ir ver a manhã, de mais perto.
Ergueu-se de manso, lavou-se, vestiu-se, e pediu que lhe levassem café ao
jardim, para onde foi sobraçando um livro que acaso topou ao pé da cama.
O jardim ficava nos fundos da casa; era separado da chácara vizinha por uma
cerca. Relanceando os olhos pela chácara, viu Estevão que era plantada com
esmero e arte, assaz vasta, recortada por muitas ruas curvas e duas grandes
ruas retas. Uma destas começava das escadas de pedra da casa e ia até o fim da
chácara; a outra ia da cerca de Luís Alves até à extremidade oposta, cortando a
primeira no centro. Do lugar em que ficava Estevão só a segunda rua podia ser
vista de ponta a ponta.
Sentou-se o bacharel em um banco que ali achou, recebeu a xícara de café, que o
escravo lhe trouxe daí a pouco, acendeu um charuto e abriu o livro. O livro era
uma Prática Forense. Demos-lhe razão ao despeito com que o fechou e atirou ao
chão, contentando-se com o canto dos pássaros e o cheiro das flores, e a sua
imaginação também, que valia as flores e os pássaros.
Deus sabe até onde iria ela, com as asas fáceis que tinha, se um incidente lhas
não colhera e fizera descer à terra. Da casa vizinha saíra um roupão, - ele não
viu mais que um roupão, - e seguira pela rua que enfrentava com a casa, a
passo lento e meditativo. Estevão, que adorava todos os roupões, fossem ou não
meditativos, deu as graças à Providência, pela boa fortuna que lhe deparava, e
afiou os olhos para contemplar aquela graciosa madrugadora. Graciosa, ainda ele
não sabia se o era; mas assentou que devia de ser, justamente porque desejava
que o fosse. A deliciosa paisagem ia ter enfim uma alma; o elemento humano
vinha coroar a natureza.
Ergueu-se Estevão, de toda a sua estatura elevada e gentil, para ver melhor, - e
ser visto, digamos a verdade toda, - aquela desconhecida vizinha, que devia ser
por força a que Luís Alves cumprimentara no teatro. Actéon cristão e modesto,
não surpreendia Diana no banho, mas ao sair dele; todavia, não palpitava menos
de comoção e curiosidade.
O roupão ia andando.
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A Mão e a Luva
Romance"A mão e a luva" (1874), segundo romance de Machado de Assis, conta a história de Guiomar, moça de origem simples e ambiciosa que é cortejada por três pretendentes, com personalidade e caráter diversos. Em permanente conflito entre a emoção e a razã...