A Escolha

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Mrs. Oswald tinha falado demais. A baronesa não a incumbira de dizer à afilhada
a razão por que a mandava chamar. Aconteceu, porém, que aquela indiscrição
não foi a única. Mrs. Oswald, em vez de esquivar-se e deixar que entre Guiomar e
a baronesa fosse tratado o assunto que as ia reunir, cedeu à curiosidade, e
acompanhou a moça.

A baronesa estava sentada, entre duas janelas, com a carta aberta nas mãos, tão
atenta em relê-la, que não ouviu o rumor dos pés de Guiomar e de Mrs. Oswald.

- Madrinha chamou-me? perguntou Guiomar parando em frente dela.

A baronesa ergueu a cabeça.

- Ah! É verdade; sim; chamei-te. Senta-te aqui.

Guiomar arrastou a cadeira que ficava mais próxima e sentou-se ao pé da
baronesa. Esta, entretanto, havia dobrado lentamente a carta, e tinha os olhos no
chão, como a procurar por onde começaria. Quando os levantou deu com a
inglesa. Ia já falar, mas estacou. A afeição que lhe tinha não impediu que achasse
demasiada familiaridade a presença de Mrs. Oswald em semelhante ocasião.
Esperou alguns instantes; mas como a inglesa parecesse inteiramente distraída:

- Mrs. Oswald disse a baronesa, vá ver se já deram de comer aos passarinhos.

A inglesa percebeu que estes passarinhos, naquele caso, eram uma pura
metáfora, e que a baronesa nada mais fazia do que pedir-lhe delicadamente que
se fosse embora. Todavia, não se deu por achada.

- Parece-me que não, disse ela; vou já saber disso.

- Olhe, disse a baronesa quando ela já ia a meio caminho; encoste-me essas
portas, e dê ordem para que ninguém nos interrompa.

A inglesa obedeceu e saiu. A careta que fez ao sair ninguém lha pôde ver, e não
se perdeu nada.

As duas ficaram sós.

- Senta-te aqui, Guiomar, disse a baronesa indicando um banquinho que lhe
ficava aos pés.

Guiomar deixou a cadeira e foi sentar-se no banquinho, pousando amorosamente
os braços nos joelhos da madrinha. Esta cingiu-lhe a cabeça com as mãos, e
assim esteve longo tempo sem falar, mas eloqüente naquela mudez, em que a
palavra pertencia ao coração. Ambas estavam comovidas; e Guiomar, de envolta
com um suspiro, murmurou este único e doce nome:

- Mamãe!

Era a primeira vez que ela lhe dava este nome, e tão fundo lhe calou na alma à
baronesa que a resposta foi cobri-la de beijos.

- Sim, tua mãe, disse a madrinha; a que te deu o ser não te amaria mais do que
eu. Tens a alma e a ternura da filha que o Céu me levou, e se todas as mães que
perdem filhos pudessem substituí-los do mesmo modo, desapareceria do mundo
a maior e mais cruel dor que há nele...

A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar-lhas. Seguiu-se uma
pausa, em que a comoção a pouco e pouco desapareceu, e a baronesa olhou para
a carta de Luís Alves, amarrotada pelo gesto de Guiomar.

- Guiomar, disse ela enfim, já refletiste no pedido de ontem à noite?

A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luís Alves; a pergunta
da baronesa desnorteou-a um pouco. Sua inteligência, porém, era clara e sagaz;
a resposta foi outra pergunta:

- Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida? disse ela
sorrindo.

- Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer
ver realizado um desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um
excelente caráter?

- Excelente, respondeu a moça.

- Uma boa alma, continuou a baronesa, e um moço distinto. Parece gostar muito
de ti, segundo disse ontem, não? É natural; só me admira que não te amem
muitos mais.

A baronesa parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a
levantar os olhos.

- Deves saber, continuou a baronesa, - que eu estimaria ver que este
casamento se efetuasse; estou convencida de que te faria feliz, e a ele também,
pelo menos tanto quanto é possível julgar das coisas presentes... Que diz o teu
coração?

E como Guiomar não respondesse logo:

- Ah! esquecia-me do que me disseste há pouco. Uma noite não é o bastante
para decidir de todo o resto da vida. Bem; ouvir-me-ás mais duas coisas. A
primeira é que... Lê tu mesma esta carta.

A baronesa deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luís Alves fazia
de sua mão. Enquanto ela percorria com os olhos as poucas linhas escritas, a
madrinha parecia observá-la fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a
impressão que o pedido lhe fazia, se espanto, se satisfação. Não houve espanto
nem satisfação aparente; Guiomar leu a carta e entregou-a à madrinha.

- Leste? É a primeira coisa que eu queria dizer-te. O Dr. Luís Alves pede-te em
casamento; tens de escolher entre ele e Jorge. A segunda coisa é que dos dois
pretendentes Jorge é o que meu coração prefere; mas não sou eu que me caso,
és tu; escolhe com plena liberdade aquele que te falar ao coração.

Guiomar erigiu o busto e olhou diretamente para a madrinha, com tais sinas de
espanto no rosto, que esta não pôde deixar de lhe perguntar:

- Que tens?

A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os lábios; travou-lhe
da mão e apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ela como a refletir. A
expressão de seu rosto passara do espanto à satisfação e desta a uma coisa que
parecia a um tempo indignação e asco.

- Oh! madrinha! exclamou Guiomar, por que se não entenderam logo os nossos
corações? Não havia mister pôr de permeio um espírito importuno e
desconsolador. Se eu adivinhara essas palavras que acabou de dizer, não teria
padecido metade do que me fazem padecer há longos dias...

- Padecer?

- Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu
que ouviu; posso agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a afligir.

Não precisava dizer mais nada; a escolha que ela ia fazer estava já indicada pelo
menos. Entendeu-o a baronesa, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviulhe
o suspiro, e percebeu a tristeza súbita; arrependeu-se de ter ido tão longe.

- Percebo, respondeu a baronesa, queres dizer que dos dois pretendentes
escolhes o Dr. Luís Alves?

A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ela com uma expressão de
ansiedade que a afligiu.

- Fala, repetiu a baronesa.

- Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.

A baronesa estremeceu.

- Falas sério? Não creio; não é esse o sentimento do teu coração. Vê-se que não
é. Queres iludir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste
nunca. Mas amas ao outro, não é? Que tem isso? Não me dá o prazer que eu
teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade está acima das minhas
preferências. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o que
pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o coração, - um coração,
sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele.

Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do
coração aos lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a
madrinha; e se leu atento o que precede verá que era isso mesmo o que ela
desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A moça não queria
iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração, para que a
madrinha conferisse, por si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um
pouco de meio indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia,
se não tomassem à má parte o vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhe dirá que
esta Guiomar, sem perder as excelências de seu coração, era do barro comum de
que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dirá também que, apesar
de seus verdes anos, ela compreendia já que as aparências de um sacrifício
valem mais, muita vez, do que o próprio sacrifício.

A baronesa acabara de falar. A alegria do rosto de Guiomar confirmou a sua
primeira impressão, e se a escolha era contrária ao que ela desejava, a satisfação
da afilhada pagou-lhe tudo quanto ela ia perder. Era assim aquela alma de mãe;
boa, dedicada e generosa.

- Oh! madrinha! obrigada! exclamou a moça. Não me fica odiando?

- Oh! exclamou a baronesa com um tom de repreensão.

E puxou-a para si, e abraçou-a com amor. Guiomar correspondeu ao movimento,
e as duas confundiram as suas alegrias íntimas e afeições sinceras.

Mrs. Oswald viu-as daí a pouco, risonhas e entendidas. Era fácil concluir qual dos
dois pretendentes vencera; Guiomar não receberia de tão boa cara o sobrinho da
baronesa. Tudo estava acabado; e talvez que a sua própria pessoa padecera
naquele lance último. A baronesa pedira a Guiomar que lhe explicasse a que
padecimentos aludira, mas a moça preferiu não dizer nada, não só por afligir a
madrinha, como por não dar um aspecto de rivalidade à situação entre ela e Mrs.
Oswald.

A escolha estava feita, o consentimento dado. A baronesa respondeu nessa
mesma tarde ao pretendente feliz. Estevão teria manifestado ruidosamente toda
a alegria que semelhante resposta lhe causara; sua alma apaixonada e
exuberante contaria a Deus e aos homens aquela imensa fortuna; Luís Alves
encerrou o prazer, aliás grande, dentro de si; pensou na moça e no futuro alguns
instantes, mas não falou deles a ninguém.

A baronesa escreveu nesse mesmo dia ao sobrinho, comunicando-lhe a resposta
de Guiomar. Os leitores não terão dificuldade de admitir que o coração de Jorge
não sentiu o golpe profundamente, mas sentiu alguma coisa. Não foi nessa noite
à casa da tia; não foi também na segunda; na terceira chegou a descer as
escadas; na quarta embicou para Botafogo.

- Tudo está acabado, disse-lhe a tia verdadeiramente sentida.

- Acabado! suspirou Jorge.

- Agora, é preciso ânimo; espero que serás homem.

- Oh! serei homem! suspirou outra vez Jorge.

E dois suspiros, arrancados do peito de um homem tão grave, deviam ser por
força dois suspiros gravíssimos, como facilmente acredita o leitor.

Efetivamente a fisionomia do moço não tinha abatimento nem aflição; não a
amarrotava o menor vestígio de noite mal dormida, menos ainda de lágrimas
enxutas. Alegre não era, mas grave e austera, como ele a trazia sempre, a
contrastar com o retesado do bigode.

A baronesa imaginou contudo que a dor do sobrinho devia tê-lo mortificado
muito; apertou-lhe as mãos com ternura e disse-lhe ainda algumas palavras de
animação.

Imagine-se o que seria o primeiro encontro de Jorge com Guiomar. A moça
estava serena, talvez risonha e até compassiva. Se tivesse de casar com ele
odiara-o decerto; agora já lhe perdoava o amor. Jorge pela sua parte não deixou
de ficar um tanto abalado, em parte comoção, em parte constrangimento, sendo
porém o constrangimento maior do que a comoção. Nos lábios pairou-lhe um
desses sorrisos em que o olhar penetrante do povo ou a sua imaginação
pinturesca descobriu a cor amarela. Se outro fosse o aspecto, é provável que ela
lhe conservasse, ao menos, o respeito. Mas aquele sorriso perdeu-o de todo no
ânimo de Guiomar.

Na primeira ocasião que se lhe ofereceu, expandiu-se Jorge com Mrs. Oswald.

- Perdeu-se tudo... murmurou ele.

A inglesa não respondeu.

Jorge continuou ainda a falar, e a inglesa a ouvir, mas a ouvir só, e a querer
diverti-lo daquele assunto.

- Tudo se perdeu, disse enfim o sobrinho da baronesa, talvez por culpa sua.

- Minha? perguntou Mrs. Oswald.

- Sua.

- Mas...

Jorge hesitou um instante.

- Não mostrou calor suficiente, disse ele enfim.

- Que quer? disse Mrs. Oswald. O coração não se pode dominar, nem há meio de
impor-lhe um sentimento. D. Guiomar é uma santa criatura, ama deveras ao seu
rival; há nada mais justo do que casá-los?

- De maneira que...

- De maneira que tudo era lícito fazer na suposição de que ela não amava a
outro, mas uma vez que ama ...

Luís Alves, na noite do dia em que recebeu a carta, foi à casa da baronesa, que o
recebeu com o melhor de seus sorrisos. A felicidade de Guiomar fazia-a
completamente feliz; nem iras, nem ressentimentos, como anunciara Mrs.
Oswald. Todo o castelo de cartas caíra por terra, desde que a sinceridade da
baronesa interveio.

A Mão e a LuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora