Golpe

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Um dia de manhã acordou Estevão com a resolução feita de dar o golpe decisivo.
Os corações frouxos têm destas energias súbitas, e é próprio da pusilanimidade
iludir-se a si mesma. Ele confessava que nada havia feito, e que a situação exigia
alguma coisa mais.

- Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje, pensava o rapaz;
Guiomar trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, há nela espírito
elevado; há de reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este
meu, vale um pouco mais do que lisonjarias de sala.

A resolução estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estevão
hesitou largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmiti-lo por via
do papel. Qualquer dos modos tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele
receava ser frio na declaração escrita ou incompleto na confissão oral. Irresoluto
e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos intervalos; enfim, deferiu
a escolha para outra ocasião.

O acaso supriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.

Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram
passear à chácara. Estevão que, como Luís Alves, era dos convivas, afastou-se
gradualmente dos outros grupos, e aproximou-se daquela cerca histórica onde,
após dois anos de ausência e esquecimento, vira, já transformada, a formosa
Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os olhos nesse sítio, depois da
conversa, que aí tivera com ela. A comoção que sentiu foi naturalmente grande;
ressurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o céu brilhante, o doce alento da
manhã, e por fim a figura da moça, que ali apareceu, como a alma do quadro,
trazendo-lhe recordações, que ele julgava mortas, esperanças que supunha
impossíveis.

Estevão curvou a cabeça ao doce peso daquelas memórias, a alma bebeu, a
largos haustos, a vida toda que a imaginação lhe criava e talvez a noite o
tomasse na mesma atitude, se a voz maviosa de Guiomar, lhe não dissesse a
poucos passos de distância:

- Sr. doutor, perdeu alguma coisa?

O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das
calhes próximas, a olhar e a sorrir para ele. Estevão sorriu também, e com uma
presença de espírito assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como
ele era, prontamente respondeu:

- Não perdi nada, mas achei uma coisa.

- Vejamos o que foi.

E Guiomar aproximou-se, passo firme e seguro, e Estevão, sem muito vacilar, ali
mesmo forjou uma reflexão filosófica a respeito de um inseto que casualmente
passava por cima de uma folha seca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito
de vir um pouco forçada e de acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o
seu caminho, quando ele, colhendo as forças todas, a fez deter com estas
palavras:

- E se eu tivesse achado outra coisa?

- Ainda mais! exclamou ela voltando-se risonha.

Estevão deu dois passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moça
fez-se séria e dispôs-se a ouvi-lo.

- Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperança e de
saudade, um passado que eu julgara não reviver mais, uma dor oculta e
medrosa, vivida na solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lágrimas? Se
eu tivesse achado aqui a página rota de uma história começada e interrompida,
não por culpa de ninguém na Terra, mas da estrela sinistra da minha vida, que
um anjo mau acendeu no Céu, e que, talvez, talvez ninguém nunca apagará?

Estevão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.

Aquela declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento
do rapaz, que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do
assombro. Ele próprio admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia
dos lábios da moça, repassava na memória, aliás confusamente, o que tão a
frouxo lhe saíra do peito naquela hora de abençoada temeridade.

- Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, é natural que
preferisse achar outra coisa menos melancólica. Entretanto, parece que nada
mais achou do que esta ocasião de falar, com a viva imaginação que Deus lhe
deu; num ou noutro caso, porém, posso decerto lastimá-lo ou admirá-lo, mas não
me é dado ouvi-lo.

E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estevão, receando perder a ocasião que
a fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e súplice:

- Atenda-me um só minuto!

- Não um, mas dez - respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto
para ele - e serão provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à
comiseração que me inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e
expressivo silêncio em que se tem conservado até hoje, concedo-lhe que diga
tudo, para me ouvir uma só palavra.

A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impaciência
do que à comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estevão batia-lhe como
nunca, - como o coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema.
Todo aquele castelo de vento, laboriosamente construído nos seus dias de ilusão,
todo ele se esboroava e desfazia, como vento que era. Estevão arrependera-se do
impulso que o levara a violar ainda uma vez o segredo dos seus sentimentos
íntimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o melhor do seu
sangue juvenil.

Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam
medir-se, ela serena e quieta, ele trêmulo e gelado.

- Uma só palavra, repetiu Estevão, e essa adivinho que será de desengano.
Embora! Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma coisa, força é que lhe diga tudo,
- feliz, se me restar, ao menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar, -
o seu remorso.

Guiomar ouvira-o tranqüilamente; a última palavra fê-la estremecer. Sorriu,
entretanto, de um sorriso um pouco voluntário e esperou.

A narração foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasião, o lugar e a pessoa;
durou apenas dez minutos. Estevão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe
tivera outrora, nem o que agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disselhe
as dores que curtira, as esperanças que afinal lhe enfloravam a alma, tudo
quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar de perto, de gozar
naquele escasso ponto da Terra a maior de todas as bem-aventuranças.

Tal é a transcrição, não literal, mas fiel, do que disse Estevão durante esses dez
minutos. As palavras caíam-lhe trêmulas e a voz saía-lhe sumida, em parte
porque ele forcejava em a abafar, a fim de que o não ouvissem, em parte porque
a comoção lhe comprimia a garganta. A dor era visivelmente sincera; a
eloqüência vinha do coração.

Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a princípio um meio riso
parecia desabrochar-lhe os lábios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe
caísse um véu mais compassivo e humano. Havia nela impaciência e ansiedade
de acabar, de sair dali; era, sem dúvida, o receio de que a ausência se
prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas havia também comiseração
e piedade.

- Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estevão
concluindo; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa única de tudo.
Parecia-me ver o contrário do que existia; cheguei a supor que havia em seu
coração alguma coisa que não era a total indiferença; vejo que foi tudo ilusão.

O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que aí ficam, todas humildes
e resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submissão assim
devia por força comover a uma mulher amada. Guiomar, falou-lhe sem azedume:

- Era ilusão, disse ela. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o
recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa
disso?

- Nenhuma.

- Nem o senhor também, e espero que esta mútua justiça avigore o sentimento
de estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não pode
haver outra coisa, - da minha parte ao menos. É pouco, decerto...

- Não é pouco, é coisa diferente, interrompeu Estevão.

- Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.

Estevão abriu a boca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que
sentia; levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela
com os olhos secos e parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era
claro, depois daquele desengano, que lhe cumpria não voltar ali mais, pelo menos
com a assiduidade da esperança; e assim era que a única e amarga satisfação de
a ver, nem essa já agora se lhe consentia.

- Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja
homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma
criança.

- Talvez, respondeu o moço suspirando.

- E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria
nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo
que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações
impossíveis.

Guiomar estendeu-lhe a mão, em que ele tocou levemente.

A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braças de distância; vinha encostada
ao braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela já não ouvia. Tinha os
olhos cravados nos dois interlocutores de há pouco. A moça, apenas vira de longe
a madrinha, deu afoitamente o braço a Estevão, e seguiram ambos a encontrarse
com ela; o rosto de Guiomar, não revelava nada; o de Estevão vinha
perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa:

- Jorge, disse ela em voz baixa, precisamos conversar.

A Mão e a LuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora