O passeio da baronesa durou pouco mais de meia hora. O sol começava a
aquecer, e apesar de ser bastante sombreada a chácara, o calor aconselhava à
boa senhora que se recolhesse. Guiomar deu-lhe o braço, e ambas, seguindo pelo
mesmo caminho, guiaram para casa.
- Parece muito tarde, Guiomar, disse a baronesa ao cabo de alguns segundos.
- E é, madrinha. Demorei-me hoje mais do que costumo, por causa de um
encontro que tive aqui na chácara.
- Um encontro?
- Um homem.
- Algum ladrão? perguntou a madrinha parando.
- Não, senhora, respondeu Guiomar sorrindo, não era ladrão. A minha mestra de
colégio... sabe que morreu?
- Quem disse isso?
- O sobrinho, o tal sujeito que encontrei aqui hoje.
- Você está zombando comigo! Um homem na chácara?
- Não era bem na chácara, mas no jardim do Dr. Luís Alves. Estava encostado à
cerca; trocamos algumas palavras.
A baronesa olhou para ela alguns segundos.
- Mas, menina, isso não é bonito. Que diriam se os vissem?... Eu não diria nada,
porque conheço o que você vale, e sei a discrição que Deus lhe deu. - Mas as
aparências... Que qualidade de homem é esse sobrinho?
Interrompeu-as uma mulher de quarenta e quatro a quarenta e cinco anos, alta e
magra, cabelo entre louro e branco, olhos azuis, asseadamente vestida, a Sra.
Oswald, - ou mais britanicamente, Mrs. Oswald, - dama de companhia da
baronesa, desde alguns anos. Mrs. Oswald conhecera a baronesa em 1846; viúva
e sem família, aceitou as propostas que esta lhe fez. Era mulher inteligente e
sagaz, dotada de boa índole e serviçal. Antes da ida de Guiomar para a
companhia da madrinha, era Mrs. Oswald a alma da casa; a presença de
Guiomar, que a baronesa amava extremosamente, alterou um pouco a situação.
- São nove horas! disse de longe a inglesa; pensei que hoje não queriam voltar
para casa. O calor está forte; e a senhora baronesa sabe que não é conveniente
expor-se aos ardores do sol, sobretudo neste tempo de epidemias.
- Tem razão, Mrs. Oswald; mas Guiomar tardou hoje tanto em ir buscar-me, que
o passeio começou tarde.
- Por que me não mandou chamar?
- Estava talvez a dormir, ou entretida com o seu Walter Scott...
- Mílton, emendou gravemente a inglesa; esta manhã foi dedicada a Mílton. Que
imenso poeta, D. Guiomar!
- Tamanho como este calor, observou Guiomar sorrindo. Apertemos o passo e lá
dentro a ouviremos com melhor disposição.
Foram as três andando, subiram a escada e entraram na sala de jantar, que era
vasta, com seis janelas para a chácara. Dali seguiram para uma saleta, onde a
baronesa sentou-se na sua poltrona, a esperar a hora do almoço. Guiomar saiu
para ir cuidar da toilette; e a baronesa que desde alguns minutos estivera
cabisbaixa e pensativa, olhou fixamente para Mrs. Oswald, sem dizer palavra.
Era ela uma senhora de cinqüenta anos, refeita, vestida com esse alinho e
esmero da velhice, que é um resto da elegância da mocidade. Os cabelos, cor de
prata fosca, emolduravam-lhe o rosto sereno, algum tanto arrugado, não por
desgostos, que os não tivera, mas pelos anos. Os olhos luziam de muita vida, e
eram a parte mais juvenil do rosto.
Tendo casado cedo, coube-lhe a boa fortuna de ser igualmente feliz desde o dia
do noivado até o da viuvez. A viuvez custara-lhe muito; mas já lá iam alguns
anos, e da crua cor que tivera ficara-lhe agora a consolação da saudade.
- Chegue-se mais perto; preciso falar-lhe a sós, disse ela à inglesa, que se
achava a alguns passos de distância.
Mrs. Oswald foi até a porta espreitar se viria alguém e voltou a sentar-se ao pé
da baronesa. A baronesa estava outra vez pensativa, com as mãos cruzadas no
regaço e os olhos no chão.
Estiveram as duas ali silenciosas alguns dois ou três minutos. A baronesa
despertou enfim das reflexões, e voltou-se para a inglesa:
- Mrs. Oswald, disse ela, parece estar escrito que não serei completamente feliz.
Nenhum sonho me falhou nunca; este, porém, não passará de sonho, e era o
mais belo de minha velhice.
- Mas por que desespera? disse a inglesa. Tenha ânimo, e tudo se há de
arranjar. Pela minha parte, oxalá pudesse contribuir para a completa felicidade
desta família, a quem devo tantos e tamanhos benefícios.
- Benefícios!
- E que outra coisa são os seus carinhos, a proteção que me tem dado, a
confiança...
- Está bom, está bom, interrompeu afetuosamente a baronesa; falemos de outra
coisa.
- Dela, não é? Diz-me o coração que com alguma paciência tudo se alcançará.
Todos os meios se hão de tentar; e todos eles são bons se se trata de fazer a
felicidade sua e dela. Bem está o que bem acaba, disse um poeta nosso, homem
de juízo. Por enquanto só vejo um obstáculo: a pouca disposição...
- Só esse?
- Que outro mais?
- Talvez outro, disse a baronesa abaixando a voz; pode ser que não, mas tão
infeliz sou neste meu desejo, que há de vir a ser obstáculo, talvez.
- Mas que é?
- Um homem, um moço, não sei quem, sobrinho da mestra que foi de
Guiomar... Ela mesma contou-me tudo há pouco.
- Tudo o quê?
- Não sei se tudo, mas enfim disse-me que, estando a passear na chácara, vira o
tal sobrinho da mestra, junto à cerca do Dr. Luís Alves, e ficara a conversar com
ele. Que será isto, Mrs. Oswald? Algum amor que continua ou recomeça agora, -
agora, que ela já não é a simples herdeira da pobreza de seus pais, mas a minha
filha, a filha do meu coração.
A comoção da baronesa ao proferir estas palavras era tal, que Mrs. Oswald
pegou-lhe afetuosamente das mãos e procurou confortá-la com outras palavras
de esperança e confiança. Disse-lhe, além disso, que o simples conversar com
esse homem, que aliás nenhuma delas conhecia, não era razão para supor uma
paixão anterior.
- Enfim, concluiu a inglesa, custa-me crer que ela ame a alguém neste mundo.
Por enquanto estou que não gosta de ninguém, e a nossa vantagem não é outra
senão essa. Sua afilhada tem uma alma singular; passa facilmente do entusiasmo
à frieza, e da confiança ao retraimento. Há de vir a amar, mas não creio que
tenha grandes paixões, ao menos duradouras. Em todo o caso, posso responderlhe
atualmente pelo seu coração, como se tivesse a chave na minha algibeira.
A baronesa abanou a cabeça.
- Quanto a esse homem, continuou Mrs. Oswald, saberemos quem é ele, e que
relações de afeto houve no passado.
- Parece-lhe possível?
- Naturalmente!
A inglesa proferiu esta única palavra com a segurança necessária para serenar o
ânimo da boa senhora, que ficou algum tempo a olhar pasmada para ela, como
quem refletia.
- Há ocasiões, disse enfim a baronesa ao cabo de alguns segundos de silêncio,
há ocasiões em que eu quase chego a sentir remorsos do amor que tenho à
Guiomar. Ela veio preencher na minha vida o vácuo deixado por aquela pobre
Henriqueta, a filha das minhas entranhas, que a morte levou consigo, para mal
de sua mãe. Se havia de ser infeliz, melhor é que a chore morta, com a
esperança de a ir encontrar no Céu. Mas não lhe quis mais, nem talvez tanto,
como a esta criança, que levei à pia, e de quem Deus me fez mãe...
A baronesa calou-se; ouvira passos no corredor.
Guiomar, embora tivesse ido vestir-se e aprimorar-se, com tão singelos meios o
fizera, que não desdizia daquele matinal desalinho em que o leitor a viu no
capítulo anterior. O penteado era um capricho seu, expressamente inventado
para realçar a um tempo a abundância dos cabelos e a senhoril beleza da testa.
As pontas bordadas de um colarinho de cambraia dobravam-se faceiramente
sobre o azul do vestido de glacé, talhado e ornado com uma simplicidade
artística. Isto, e pouco mais, era toda a moldura do painel, - um dos mais belos
painéis que havia por aqueles tempos em toda a Praia de Botafogo.
- Viva a minha rainha de Inglaterra! exclamou Mrs. Oswald quando a viu
assomar à porta da saleta.
E Guiomar sorriu com tanta satisfação e gozo ao ouvir-lhe esta saudação familiar,
que um observador atento hesitaria em dizer se era aquilo simples vaidade de
moça, ou se alguma coisa mais.
A baronesa pôs os olhos na afilhada, uns olhos amorosos e tristes, em que a
moça reparou, e que a tornaram séria durante alguns rápidos segundos. Mas
sorriu depois; e pegando das mãos da madrinha deu-lhe dois beijos no rosto,
com tanta ternura e tão sincera, que a boa senhora sorriu de contentamento.
- Não precisa falar, disse Guiomar, já sei que me acha bonita. É o que me diz
todos os dias, com risco de me perder, porque se acabo vaidosa, adeus, minhas
encomendas, ninguém mais poderá comigo.
Guiomar disse isto com tanta graça e singeleza, que a madrinha não pôde deixar
de rir, e a melancolia acabou de todo. A sineta do almoço chamou-as a outros
cuidados, e a nós também, amigo leitor. Enquanto as três almoçam, relanceemos
os olhos ao passado, e vejamos quem era esta Guiomar, tão gentil, tão buscada e
tão singular, como dizia Mrs. Oswald.
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A Mão e a Luva
Romansa"A mão e a luva" (1874), segundo romance de Machado de Assis, conta a história de Guiomar, moça de origem simples e ambiciosa que é cortejada por três pretendentes, com personalidade e caráter diversos. Em permanente conflito entre a emoção e a razã...