Embargos de terceiro

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Durante três dias deixou Luís Alves de ir à casa da baronesa, estando aliás a
morrer por isso. Entrava porém no plano esta ausência; era das instruções que
ele mesmo dera ao seu coração; não havia remédio senão observá-las.

No quarto dia recebeu um bilhete da baronesa que o cumprimentava pela eleição.
A mala do Norte chegara, e com ela a notícia da vitória eleitoral. Estava Luís
Alves deputado; ia enfim dar a sua demão no fabrico das leis. Estevão foi o
primeiro que o felicitou; era o antigo companheiro dos bancos da academia; tanto
ou mais do que os outros devia aplaudir aquela boa fortuna. Não lhe escondeu,
entretanto, a inveja que ela lhe metia:

- Deputado! suspirou ele. Oh! eu também podia ser deputado.

Estevão dizia isto, como a criança deseja o dixe que vê no colo da outra criança,
- nada mais. Eram os seus sonhos de outrora, que renasciam tais quais eram,
inconsistentes, vagos, prestes a dissiparem-se com o primeiro raio da manhã.

Luís Alves apressou-se a ir agradecer à baronesa a felicitação. Guiomar teve um
leve estremecimento quando o viu, mas recebeu-o tranqüila e risonha, quase
indiferente. O advogado era hábil; não a perseguiu com os olhos; sobre acordar a
atenção das demais pessoas, era seguir o método comum. Ele não queria
parecer-se com os outros.

Guiomar, entretanto, observava-o a espaços, de revés, como a querer
surpreendê-lo; a pouco e pouco, porém, o seu olhar foi sendo mais direito e
firme. O de Luís Alves era natural e igual como antes era, como era ainda agora
com todos.

Ao sair, junto à porta de uma sala, onde acaso a topou, Luís Alves teve ocasião
de lhe dizer esta simples palavra:

- Perdoou-me?

A moça retirou a mão, que ele tinha presa na sua, e furtou o corpo, ao mesmo
tempo que lhe caíam as pálpebras.

- Perdoou-me? repetiu ele.

Guiomar retirou-se sem dizer palavra. Luís Alves esperou que ela desaparecesse
e saiu. A moça, entretanto ficou irritada por nada lhe ter respondido, sendo
verdade que nada achou nem acharia talvez que lhe responder; mas arrependeuse
e pensou longo tempo naquilo.

Quer dizer que o amava? Quer dizer que estava prestes a isso. A arraiada
branqueava o céu, tingiria depois o cimo dos montes, entornar-se-ia enfim pela
encosta abaixo, até aparecer o sol, - o sol contemporâneo de Adão, e do último
homem que há de vir.

Dali a dias, entrando Luís Alves em casa da baronesa, teve a boa fortuna de
encontrar a moça sozinha, na sala do trabalho, donde a baronesa se ausentara
cinco minutos antes. Mrs. Oswald achava-se fora. Era a hora da tardinha; o dia
estava prestes a afogar-se no seio da noite.

Guiomar, molemente sentada numa cadeira baixa, tinha um livro aberto sobre os
joelhos e os olhos no ar. Luís Alves surpreendeu-a nessa atitude meditativa, mais
bela do que nunca, porque assim, e àquela hora, e com o vestido meio escuro
que lhe realçava a cor de leite da face, tinha um quê de gracioso e severo, ao
mesmo tempo, que parecia buscado de propósito para recebê-lo.

- Minha madrinha já vem, disse Guiomar logo depois de lhe estender a mão, que
ele apertou e sentiu um pouco trêmula.

- Talvez daqui a cinco minutos, disse ele; é bastante para decidir o meu destino.
Duas vezes lhe perguntei se me perdoara; pela terceira lhe peço que me
responda; custa pouco uma única palavra; custa menos ainda, um único gesto.

A moça olhou algum tempo para o livro que tinha diante de si. A manhã, porém,
era já alta no coração de Guiomar, a claridade intensa, o sol quente e vivo,
porque ela não olhou muito tempo para o livro, nem hesitou mais do que era
natural e exigível naquela ocasião. Dois minutos depois fez o gesto, um gesto só,
mas ainda mais eloqüente do que se ela falasse, - estendeu-lhe a mão.

Luís Alves apertou-lha entre as suas.

A comoção era natural em ambos; ali estiveram alguns instantes calados, ele com
os olhos fitos nela, ela com os seus no chão. As mãos tocavam-se e os corações
palpitavam uníssonos. Decorreram assim cinco breves minutos. Ela foi a primeira
que rompeu o silêncio.

- Um gesto, um só gesto, e é o meu destino que lhe entrego com ele, disse
Guiomar olhando em cheio para o moço.

- Ainda não. Se os nossos destinos se ligarem, estou convencido de que o meu
amor, pelo menos, terá a virtude de a tornar feliz. Mas nada está feito ainda, e se
eu fui breve e apressado na confissão, não o desejo ser na consagração que lhe
peço.

Luís Alves calara-se; a moça olhava para ele como buscando entendê-lo.

- Sim, continuou ele; melhor é que não ceda a um instante de entusiasmo.
Minha vida é sua; todo o meu destino está nas suas mãos... Contudo não quero
surpreender-lhe o coração neste momento; no dia em que me julgar
verdadeiramente digno de ser seu esposo, ouvi-la-ei e segui-la-ei.

A resposta da moça foi apertar-lhe as mãos, sorrir, e embeber os seus olhos nos
dele. O passo da baronesa interrompeu essa contemplação.

Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele sentimento?
Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade do coração, de
lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até aí só; daí por diante
entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar como uma alma que a
paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor silencioso e tímido. Nada
disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava essas flores do coração, mas
não havia esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos ramos
do arbusto modesto plantado em frente da janela rústica. Ela queria-as belas e
viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto sobre móvel raro, entre duas janelas
urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de cachemira, que
deviam arrastar as pontas na alcatifa do chão.

Podia dar-lhe Luís Alves este gênero de amor? Podia; ela sentiu que podia. As
duas ambições tinham-se adivinhado desde que a intimidade as reuniu. O
proceder de Luís Alves, sóbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem
demasias ociosas, fazia perceber à moça que ele nascera para vencer, e que a
sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo, que as tinha ou
parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do homem público estava
dado; ele ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes à glória. Em torno dele
ia fazer-se aquela luz, que era a ambição da moça, a atmosfera, que ela almejava
respirar. Estevão dera-lhe a vida sentimental, - Jorge a vida vegetativa; em Luís
Alves via ela combinadas as feições domésticas com o ruído exterior.

Uma vez entendidos é difícil que dois corações se encubram, pelo menos aos
olhos mais sagazes. Os de Mrs. Oswald eram dos mais finos. A inglesa percebeu
dentro de pouco tempo que entre eles havia alguma coisa. Interrogar a moça era
inútil, sobre perigoso; seria ir, de coração leve, em busca de ódio, talvez. Todavia
se ainda fosse possível salvar tudo? Guiomar resistiria dificilmente a um desejo
da madrinha; era possível vencê-la por esse lado.

Mrs. Oswald concebeu então um projeto insensato, que lhe pareceu aliás
excelente e de bom aviso. O desejo de servir a baronesa e levar uma idéia ao fim
tapou-lhe os olhos da razão. Ela foi diretamente a Jorge.

- Sabe o que me está parecendo? disse ela. Parece-me que há mouro na costa.

- Mouro na costa! exclamou Jorge com uma tal expressão de desgosto, que era
fácil compreender o fundo de suspeita já existente em seu espírito

- Nada menos, disse a inglesa; mas um mouro que se pode capturar.

E a inglesa expôs um plano completo que o sobrinho da baronesa ouviu um tanto
perplexo. O plano consistia em ir Jorge pedir a moça à baronesa, em presença
dela própria. A baronesa, que nutria o desejo de os ver casados, não deixaria de
fazer pesar o seu voto na balança, e era muito difícil que a gratidão de Guiomar
não decidisse em favor de Jorge.

- A gratidão... e o interesse, continuou ela; devemos contar também com o
interesse, que é um grande conselheiro íntimo. Ela não há de querer sacrificar a
afeição da madrinha, que para ela vale...

- Oh! que triste lembrança! interrompeu Jorge, recuando diante da idéia de Mrs.
Oswald.

A inglesa sorriu, - e deixou por mão aquele argumento; firmou-se porém no da
afeição. Guiomar não se oporia a um desejo da madrinha; era urgente dar-lhe o
golpe. Jorge não se atrevia a surpreender por esse meio a aquiescência da moça;
mas acreditava na eficácia dele, e sobretudo receava perder a causa. Uma vez
que a vencesse, tudo podia confiar do tempo e do seu amor.

O conselho foi seguido pontualmente. De noite, em presença da baronesa à hora
da despedida, - porque ele hesitara a maior parte do tempo, - praticou Jorge
aquele ato insensato de declarar à moça que a amava e de lhe pedir a mão. A tia
sorriu de contentamento, mas teve a prudência de não proferir nada enquanto
Guiomar, empalidecendo, nada dizia, porque nada achava que dizer.

O silêncio durou cerca de três ou quatro minutos, um silêncio acanhado e vexado,
em que nenhum deles se atrevia a reatar a conversação. A baronesa, pela sua
parte, imaginava que os dois estavam enfim entendidos, e que a declaração era
autorizada pela moça. O enleio de Guiomar não era dos que pudessem dar
cabimento a esta suposição; mas a boa senhora via com os olhos dos seus bons
desejos.

- Pela minha parte, declarou enfim a baronesa, não me oponho; estimaria muito
que acabassem por aí. Mas é negócio do coração; devo esperar a resposta de
Guiomar.

E voltando-se para a afilhada:

- Pensa e resolve, minha filha, disse ela; e se fores feliz, sê-lo-ei ainda mais do
que tu.

Duas vezes pairou a negativa nos lábios da moça; mas a língua não se atrevia a
repetir a palavra do coração. No fim de alguns instantes:

- Refletirei, respondeu ela beijando a mão à madrinha; e continuou voltando-se
para Jorge: - Boa Noite! Até amanhã.

A Mão e a LuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora