A viagem

113 9 0
                                    

Mal recomeçara Luís Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado
apresentando-lhe um bilhete de visita.

- Que entre! disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baronesa.

E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que daí a nada
assomava à porta do gabinete, fazendo uma cortesia, sisuda, mas graciosa.

- Venho incomodá-lo, doutor? perguntou Jorge.

- Pelo amor de Deus! exclamou o advogado erguendo-se e indo buscá-lo à
porta. Não me incomodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de
uns papéis me fatigou sobremaneira, a maior fortuna que eu poderia desejar é a
presença de um homem de espírito.

Jorge agradeceu este cumprimento um pouco enfático, e retribuiu-o com outra
lisonjaria muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que ele vinha pedir
alguma coisa. Efetivamente, passados os minutos de intróito e desfiadas as
generalidades, Jorge empertigou-se mais do que até ali estivera e desfechou esta
pergunta abrupta:

- Sabe que venho pedir-lhe uma coisa grave?

Luís Alves inclinou-se.

- Grave e simples ao mesmo tempo, continuou o sobrinho da baronesa; mas
antes disso precisava saber se é tão amigo da nossa família, como ela o é do
senhor.

- Oh! decerto!

- O senhor é o menos assíduo, talvez, das pessoas que lá vão, apesar de
vizinho; só agora o vejo ali mais a miúdo; entretanto é como flor que se trai pelo
aroma; minha tia tem a seu respeito a melhor opinião do mundo; acha-lhe uma
gravidade, e eu também a sinto, e nem compreendo que um homem possa ser
outra coisa. Os tais espíritos fúteis...

- São insuportáveis, concluiu Luís Alves ansioso por chegar ao objeto da visita.

O objeto era a viagem da baronesa. Um comendador, amigo do finado barão, e
fazendeiro em Cantagalo, tinha promessa da viúva, havia dois anos, de ir lá
passar algum tempo. A baronesa esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada;
agora porém, tal fora a insistência, que se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha
propor era, - expressões dele, - uma conjuração de amigos para dissuadir a tia
daquele projeto. Afiançava ao advogado que, ainda descoberta a conjuração,
teria ele a vida sã e salva.

Luís Alves supôs a princípio que aquilo era um simples pretexto; mas, tendo
observado que a bela Guiomar não era indiferente ao rapaz, compreendeu que
este tinha na conjuração proposta, um interesse inteiramente pessoal. Enfim,
Jorge chegou a confessar que, se a tia insistisse em sair da Corte, ele não tinha
remédio senão acompanhá-la.

O acordo não foi difícil; ficou assentado que fariam todos os esforços para
dissuadir a baronesa. Jorge quis sair logo; reteve-o Luís Alves algum tempo mais,
com expressões de louvor habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na
conversação; e também deixando-se ir à feição do espírito dele, aceitando-lhe as
idéias e os preconceitos, e aplaudindo-os discretamente, - sério, quando eles o
eram ou pareciam ser, - chocarreiro quando vinham com ar de graça, -
respondendo enfim a todos os gestos e meneios do outro, como faz o espelho por
ofício e obrigação: - toda a arte em suma de tratar os homens, de os atrair e de
os namorar, que ele aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na
vida pública.

De noite foi Luís Alves à casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de
intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao pé de si
uma senhora da mesma idade que ela, igualmente viúva, e defronte as suíças
brancas e aposentadas de um ex-funcionário público. Num sofá, viam-se Mrs.
Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora muito baixa, ora um pouco mais
elevada. Adiante, dois moços contavam a duas senhoras o enredo da última peça
do Ginásio. Mais longe, uma moça da vizinhança gabava a outra a tesoura de
Mme. Bragaldi, que pedia meças, dizia ela, ao pincel do cenógrafo, seu marido.
Enfim, junto a uma das janelas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil
ninharias graciosas a outra pessoa, que era nada menos que a nossa conhecida
Guiomar. A conversa, assim dividida, tornava-se às vezes geral, para recair logo
no particularismo anterior; os grupos modificavam-se também de quando em
quando, do mesmo modo que o assunto, e assim se iam matando
agradavelmente as horas, que não resistiam, coitadas, nem apressavam o passo
um minuto sequer.

Luís Alves agregara-se ao grupo da baronesa, ao qual não tardou juntar-se Jorge.
O advogado teve a discrição de esperar que o assunto viesse de si, se viesse, ou
de o introduzir na conversa, quando lhe parecesse de feição. Mas Jorge, que
estava impaciente, arrastou o assunto ao debate. Luís Alves, mostrou-se fiel à
palavra dada; declarou amavelmente que se opunha à viagem, como vizinho e
amigo, que reclamaria em último caso o auxílio de força pública; que era um erro
e um crime deixar aquela casa viúva da benevolência e da graça e do gosto e de
todas as mais qualidades excelentes que ali iam achar os felizes que a
freqüentavam; que, enfim, o mal era tamanho, que não deixaria de ser pecado,
posto não viesse apontado nos catecismos, e como pecado, seria de força punido,
com amargas penas, no outro século, pelo que, e o mais dos autos, era sua
decisão que a baronesa devia ficar.

Todas estas razões foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e
folgazão, a que a baronesa respondia igualmente, e que não daria nada mais de
si, se Luís Alves, mudando de estilo, não fosse pôr o assunto em diferente
terreno.

- Digamos a verdade, Sra. baronesa, a viagem há de ser-lhe imensamente
incômoda, se for só isso; suas forças não são decerto iguais às de seus primeiros
anos; sua saúde é melindrosa e não poderá sofrer tanta fadiga. Confesso que falo
em nome de certo interesse pessoal de amigo e de vizinho; mas a principal razão
não é essa. Se houvesse um motivo urgente, bem; mas tratando-se apenas de
uma promessa feita há tanto tempo, seria crueldade da minha parte não insistir
que ficasse.

A baronesa defendia-se, e Luís Alves não tardou em reconhecer de si para si que
ela não se defendia com o vigor de uma resolução original e própria. A conversa,
entretanto, tornara-se mais geral; de todos os lados partiam votos de oposição.

Guiomar havia já alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o ouvido
afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a observava; mas é
privilégio do romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que
as outras não vêem ou não podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler,
não só o tédio que lhe causava aquela opinião unânime contra o projeto da
baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e voluntário.

- Estamos de acordo, creio eu? perguntou Luís Alves olhando alternadamente
para a baronesa e as outras pessoas.

- Não é possível, doutor, respondia a boa senhora.

- Decerto que não é possível, interveio Guiomar do lugar onde estava. A viagem
não oferece risco, nem minha madrinha está inválida. Demais, é uma promessa
feita; não se pode deixar de cumprir.

Esta opinião, dita em tom seco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu
natural aveludado, equivaleu a um pouco de água fria lançada na fervura
triunfante dos ânimos.

- Guiomar tem razão, disse a baronesa; já agora é preciso ir; são apenas três ou
quatro meses.

Luís Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar ver-lhe no rosto
todas as antecedências da resolução da baronesa. A oposição afrouxara; Jorge
chamou em vão o advogado em seu auxílio. A resolução da tia, se alguma vez
fora abalada, tornara-se outra vez firme.

Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha. Jorge fitou-a
com uma expressão de vaidade e cobiça. Luís Alves, que se achava de pé, recuou
um pouco para deixá-la passar. Os olhos com que a contemplou não eram de
cobiça nem de vaidade; a leitora, que ainda lembrará da confissão por ele mesmo
feita a Estevão, suporá talvez que eram de amor. Talvez, - quem sabe? - amor
um pouco sossegado, não louco e cego como o de Estevão, não pueril e lascivo,
como o de Jorge, um meio-termo entre um e outro, - como podia havê-lo no
coração de um ambicioso.

- O Dr. Luís Alves defende causas más, disse Guiomar sorrindo para ele; não se
trata de uma coisa impossível. Quanto a mim, Cantagalo só tem um
inconveniente; será menos divertido que a Corte; mas o tempo passa depressa...

- Nesse caso, disse Jorge suspirando, eu também dispenso teatros e bailes;
sacrifico-me à família.

- Queres ir conosco? perguntou a baronesa alegremente.

- Que dúvida!

Guiomar mordeu o lábio inferior, com uma expressão de despeito, que pôde
conter e abafar, sem que ninguém a percebesse, ninguém, exceto Luís Alves. Um
sorriso tranqüilo e perspicaz roçou os lábios do advogado, enquanto a moça, para
esconder a impressão que lhe ficara, de novo se dirigiu à janela, onde esteve
alguns momentos sozinha, meia voltada para fora e meia guardada pela sombra
que ali fazia a cortina. Um rumor de passos fê-la voltar-se para dentro. Era Luís
Alves.

- Ah! disse ela fingindo-se tranqüila; agradeço-lhe não haver insistido mais nos
seus conselhos.

- A intenção era boa, respondeu Luís Alves em voz baixa; mas será agora
excelente; nem tudo está perdido: eu me incumbo de salvar o resto.

Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que
parecia havê-la feito esquecer outro sentimento, igualmente natural: - o do
despeito que lhe causaria aquela singular familiaridade. Mas o assombro dominou
tudo; Guiomar sentiu que ele lera nela a razão da insistência e o desgosto do
resultado.

A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia
neles uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmitir aos
lábios. Se há nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte.

A Mão e a LuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora