Conclusão

169 11 2
                                    

Marcado o casamento para dois meses depois, todo o tempo de intervalo foi
despendido pelos noivos naquele deleitoso viver, que já não é o colóquio furtivo
do simples namoro, nem é ainda a intimidade conjugal, mas um estado
intermédio e consentido, em que os corações podem entornar-se livremente um
no outro. Aqueles não tinham nada do amor extático e romanesco de Estevão,
mas amavam sinceramente, ela ainda mais do que ele, e tão feliz um como outro.

A gente que os conhecia comentou de todos os modos e feitios aquele caso
inesperado, e a mais de um roeu a inveja do favor com que o Céu tratara a Luís
Alves. A gentileza e a elegância da moça não encontravam objeção no espírito de
ninguém; todos as confessavam e aplaudiam, porque até o silêncio mortificado de
algumas belezas rivais, se porventura as havia, - era também aplauso e do
melhor. Quanto ao caráter de Guiomar, divergiam muito as apreciações; e um
dia, em que Luís Alves lhe contava uns trechos de conversa ouvidos a furto, e de
que era objeto a noiva, ela pareceu refletir longo tempo, e enfim respondeu:

- Não admira que haja tanta opinião diferente; é natural, porque nunca
vulgarizei o meu espírito. Entretanto, a opinião dos outros importa-me pouco; eu
quisera saber a sua.

- A minha é que é um anjo.

Guiomar fez um gesto gracioso de enfado, como quem não esperava aquele
cumprimento velho e comum, aliás eternamente novo, - porque não há outro
mais pronto e mais belo nas nossas línguas cristãs. O noivo sorriu, mas nada lhe
disse, e todavia podia dizer-lhe alguma coisa, - aquilo, pelo menos, que o leitor
lhe ouviu num dos capítulos anteriores.

- Se não sabe o que sou, - continuou Guiomar, - eu mesma o direi, para que
te não case comigo assim de emboscada, e não lhe aconteça unir-se a um
demônio supondo que é um anjo.

- Um demônio! exclamou Luís Alves rindo.

- Nem mais nem menos, retrucou ela rindo também. Saiba pois que sou muito
senhora da minha vontade, mas pouco amiga de a exprimir; quero que me
adivinhem e obedeçam; sou também um pouco altiva, às vezes caprichosa, e por
cima de tudo isto tenho um coração exigente. Veja se é possível encontrar tanto
defeito junto.

Luís Alves respondeu que eram tudo qualidades excelentes, e esteve quase a
dizer que lhe faltava mencionar ainda outra, que era a fundamental de todas;
preferiu aludir a ela depois do casamento.

O casamento efetuou-se, no dia marcado com as solenidades do estilo. A manhã
daquele dia trajava um manto de neblina cerrada, que o nosso inverno lhe pôs
aos ombros, como para resguardá-la do rigor benigno da temperatura, manto que
ela sacudiu dali a nada, a fim de se mostrar qual era, uma deliciosa e fresca
manhã fluminense. Não tardou que o sol batesse de chapa nas águas tranqüilas e
azuis, e nessas colinas onde o verde natural ia alternando com a alvura das
habitações humanas. Vento nenhum; apenas uma aragem, branda e fresca, que
parecia o último respirar da noite já remota, e que só a trechos agitava as folhas
do arvoredo.

A chácara naquele dia era a mesma que nos outros, mas Guiomar achou-lhe um
aspecto novo e melhor, uma como expansão divina que animava as coisas em
redor dela. Toda a alma feliz é panteísta; parece-lhe que Deus lhe sorri de dentro
da flor que desabrocha, do fundo da água que serpeia murmurando, e até de
envolta com o cipó humilde e rústico, ou no seixo bronco e desprezado do chão.
Era assim a alma de Guiomar naquela manhã. Nunca as árvores, as flores, a
grama rasteira lhe pareceram mais vicejantes; o sentimento interno hauria
aquela vida exterior, do mesmo modo que o pulmão bebia o puro ar matinal.

De envolta com essas sensações comuns a toda a alma, havia ainda as que eram
dela, - dela, que via ali o seu último Sol de moça solteira e contemplava por
antecipação a aurora nova, o dia longo e feliz de suas férteis ambições. Neste
ponto despia a sua fantasia as asas de folha agreste, com que andara a pairar no
meio daquela vegetação, para envergar outras de seda e brocado, e voar sabe
Deus a que sítios de grandeza humana.

O acaso quis que naquela manhã vestisse o mesmo roupão com que Estevão a
vira do outro lado da cerca, e trouxesse no colo e nos pulsos o mesmo broche e
os mesmos botões de safira. Não tinha o livro; mas, em falta desta circunstância,
havia outra, que era a mesma daquela célebre manhã, havia uns olhos que do
outro lado da cerca a espreitavam namorados. Não eram, porém, os mesmos;
eram os do noivo, com quem ela foi encontrar os seus; - e o mais doloroso de
tudo é que nem a cerca, nem os demais acessórios, nada lhe lembrou o outro
homem que morria por ela. A felicidade é isto mesmo; raro lhe sobra memória
para as dores alheias.

Não menos alegre do que ela parecia a baronesa naquele dia. De longe em longe
surgia-lhe na memória a idéia do sobrinho, mas já não havia tristeza de não ter
efetuado o casamento, como desejara; tão leve foi o golpe em Jorge e tão
indiferente andava ele, que a boa senhora compreendeu que o amor, se existira,
não era grande, e sobretudo não perdurou; a idéia de que isto mesmo podia
acontecer-lhe ao cabo de seis semanas de casado, fê-la dar graças a Deus do
nenhum êxito de seus planos.

Mrs. Oswald igualmente se mostrava feliz, - talvez ainda mais, porque era-o
aparatosamente, como se quisesse resgatar as passadas culpas. Guiomar
entendia a intenção latente das manifestações ruidosas com que ela andava a
felicitá-la e bajulá-la; mas o dia não era de rancores nem de ressentimentos, e
ela recebia sorrindo as cortesanices da inglesa.

O casamento fez-se enfim. As lágrimas que a baronesa derramou, quando viu
Guiomar ligada para sempre, foram as mais belas jóias que lhe podia dar.
Nenhuma mãe as verteu mais sinceras; e, seja dito em honra de Guiomar,
nenhuma filha as recebeu mais dentro do coração.

Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante
dos grupos de curiosos, atraídos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto
de homem sentado sobre uma lájea que acaso topara ali. Quem está afeto a ler
romances, e leu esta narrativa desde o começo, supõe logo que esse homem
podia ser Estevão. Era ele. Talvez o leitor, em lance idêntico, fosse refugiar-se em
sítio tão remoto, que mal pudesse acompanhá-lo a lembrança do passado. A alma
de Estevão sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro
na ferida, uma coisa que chamaremos - voluptuosidade da dor, em falta de
melhor denominação. E foi para ali, contemplar com os indiferentes e ociosos
aquela casa onde reinava o gozo e a vida, e naquela hora que lhe afundava o
passado e o futuro de que vivera. Não o retinha a constância do estóico; pela face
emagrecida e pálida lhe corriam as lágrimas derradeiras, e o coração, colhendo as
forças que lhe restavam, batia-lhe forte na arca do peito.

Defronte dele refulgia de todas as suas luzes a mansão afortunada; detrás batia a
onda lenta e melancólica, e via-se o fundo da enseada, escuro e triste. Esta
disposição do lugar servia ao plano que ele concebera, e era nada menos do que
matar-se ali mesmo, quando já não pudesse sofrer a dor, espécie de vingança
última que queria tomar dos que o faziam padecer tanto, complicando-lhes a
felicidade com um remorso.

Mas este plano não podia realizar-se, pela razão de que era mais um devaneio,
que se lhe dissipou como os outros. A frouxidão do ânimo negou-lhe essa última
ambição. Os olhos podiam fitar a morte, como podiam encarar a fortuna; mas
faltavam-lhe os meios de caminhar a ela. Esteve ali, pois, até o fim; e em vez de
mergulhar na água e no nada, como delineara, regressou tristemente para casa,
trôpego como um ébrio, deixando ali a sua mocidade toda, porque a que levava
era uma coisa descolorida e seca, estéril e morta. Os anos passaram depois, e à
medida que vinham, ia-se Estevão afundando no mar vasto e escuro da multidão
anônima. O nome, que não passara da lembrança dos amigos, aí mesmo morreu,
quando a fortuna o distanciou deles. Se ele ainda vegeta em algum recanto da
capital, ou se acabou em alguma vila do interior, ignora-se.

O destino não devia mentir nem mentiu à ambição de Luís Alves. Guiomar
acertara; era aquele o homem forte. Um mês depois de casados, como eles
estivessem a conversar do que conversam os recém-casados, que é de si
mesmos, e a relembrar a curta campanha do namoro, Guiomar confessou ao
marido que naquela ocasião lhe conhecera todo o poder da sua vontade.

- Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que, assentado, a
escutava.

- Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter percebido
que sou uma e outra coisa.

- A ambição não é defeito.

- Pelo contrário, é virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de fazê-la vingar. Não
me fio só na mocidade e na força moral; fio-me também em você, que há de ser
para mim uma força nova.

- Oh! sim! exclamou Guiomar.

E com um modo gracioso continuou:

- Mas que me dá você em paga? um lugar na Câmara? uma pasta de ministro?

- O lustre do meu nome, respondeu ele.

Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixouse
cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o
ósculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para
aquela mão.



FIM

A Mão e a LuvaOnde histórias criam vida. Descubra agora