Guiomar tivera humilde nascimento; era filha de um empregado subalterno não
sei de que repartição do Estado, homem probo, que morreu quando ela contava
apenas sete anos, legando à viúva o cuidado de a educar e manter. A viúva era
mulher enérgica e resoluta, enxugou as lágrimas com a manga do modesto
vestido, olhou de frente para a situação e determinou-se à luta e à vitória.
A madrinha de Guiomar não lhe faltou naquele duro transe, e olhou por elas,
como entendia que era seu dever. A solicitude, porém, não foi tão constante a
princípio como veio a ser depois; outros cuidados de família lhe chamavam a
atenção.
Guiomar anunciava desde pequena as graças que o tempo lhe desabrochou e
perfez. Era uma criaturinha galante e delicada, assaz inteligente e viva, um pouco
travessa, decerto, mas muito menos do que é usual na infância. Sua mãe, depois
que lhe morrera o marido, não tinha outro cuidado na Terra, nem outra ambição
mais, que a de vê-la prendada e feliz. Ela mesma lhe ensinou a ler mal, como ela
sabia, - e a coser e bordar, e o pouco mais que possuía de seu ofício de mulher.
Guiomar não tinha dificuldade nenhuma em reter o que a mãe lhe ensinava, e
com tal afinco lidava por aprender, que a viúva, - ao menos nessa parte, -
sentia-se venturosa. Hás de ser a minha doutora, dizia-lhe muita vez; e esta
simples expressão de ternura alegrava a menina e lhe servia de incentivo à
aplicação.
A casa em que moravam era naturalmente modesta. Ali correu a infância, - mas
solitária, o que é um pouco mais grave. A mãe, quando a via embebida nos jogos
próprios da idade, infantilmente alegre, - mas de uma alegria que fazia mal a
seus olhos de mãe, tão fundo lhe doía aquele viver, - a mãe sentia às vezes
pularem-lhe as lágrimas dos olhos fora. A filha não as via, porque ela sabia
escondê-las; mas adivinhava-as através da tristeza que lhe ficava no rosto. Só
não adivinhava o motivo, mas bastava que fossem mágoas de sua mãe, para lhe
descair também a alegria.
Com o tempo, avultou outra causa de tristeza para a pobre viúva, ainda mais
dolorosa que a primeira. Na idade apenas de dez anos, tinha Guiomar uns
desmaios de espírito, uns dias de concentração e mudez, uma seriedade, a
princípio intermitente e rara, depois freqüente e prolongada, que desdiziam da
meninice e faziam crer à mãe que eram prenúncios de que Deus a chamava para
si. Hoje sabemos que não eram. Seria acaso efeito daquela vida solitária e
austera, que já lhe ia afeiçoando a alma e como que apurando as forças para as
pugnas da vida?
A primeira vez que esta gravidade da menina se lhe tornou mais patente foi uma
tarde, em que ela estivera a brincar no quintal da casa. O muro do fundo tinha
uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da
vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os
olhos, já sérios e pensativos. Naquela tarde, como estivesse olhando para as
mangueiras, a cobiçar talvez as doces frutas amarelas que lhe pendiam dos
ramos, viu repentinamente aparecer-lhe diante, a cinco ou seis passos do lugar
em que estava, um rancho de moças, todas bonitas, que arrastavam por entre as
árvores os seus vestidos, e faziam luzir aos últimos raios do sol poente as jóias
que as enfeitavam. Elas passaram alegres, descuidadas, felizes; uma ou outra lhe
dispensou talvez algum afago; mas foram-se, e com elas os olhos da interessante
pequena, que ali ficou largo tempo absorta, alheia de si, vendo ainda na memória
o quadro que passara.
A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica, sem nada explicar à
solícita curiosidade da mãe. Que explicaria ela, se mal podia compreender a
impressão que as coisas lhe deixavam? Mas, como a mãe entristecesse com
aquilo, Guiomar domou o próprio espírito e fez-se tão jovial como nos melhores
dias.
Esta era ainda outra feição da menina; tinha uma força de vontade superior aos
seus anos. Com ela, a viveza intelectual que Deus lhe dera, logrou aprender tudo
o que a mãe lhe ensinara, e melhor ainda do que ela o sabia, desde que o tempo
lhe permitiu desenvolver os primeiros elementos.
Aos treze anos ficou órfã; este fundo golpe em seu coração, foi o primeiro que ela
verdadeiramente pôde sentir, e o maior que a fortuna lhe desfechou. Já então a
madrinha a fizera entrar para um colégio, onde aperfeiçoava o que sabia e onde
lhe ensinavam muita coisa mais.
Vivia ainda então a filha da baronesa, uma interessante criança de treze anos,
que era toda a alma e encanto de sua mãe. Guiomar visitava a casa da madrinha;
a idade quase igual das duas meninas, a afeição que as ligava, a beleza e
meiguice de Guiomar, a graciosa compostura de seus modos, tudo apertou entre
a madrinha e a afilhada os laços puramente espirituais que as uniam antes.
Guiomar correspondia aos sentimentos daquela segunda mãe; havia talvez em
seu afeto, aliás sincero, um tal encarecimento que podia parecer simulação. O
afeto era espontâneo; o encarecimento é que seria voluntário.
Tinha a moça dezesseis anos quando passou para o colégio da tia de Estevão,
onde pareceu à baronesa se lhe poderia dar mais apurada educação. Guiomar
manifestara então o desejo de ser professora.
- Não há outro recurso, disse ela à baronesa quando lhe confiou esta aspiração.
- Como assim? perguntou a madrinha.
- Não há, repetiu Guiomar. Não duvido, nem posso negar o amor que a senhora
me tem; mas a cada qual cabe uma obrigação, que se deve cumprir. A minha é...
é ganhar o pão.
Estas últimas palavras passaram-lhe pelos lábios como que à força. O rubor
subiu-lhe às faces; dissera-se que a alma cobria o rosto de vergonha.
- Guiomar! exclamou a baronesa.
- Peço-lhe uma coisa honrosa para mim, respondeu Guiomar com simplicidade.
A madrinha sorriu e aprovou-a com um beijo, - assentimento de boca, a que já o
coração não respondia, e que o destino devia mudar.
Pouco tempo depois padeceu a baronesa o golpe quase mortal a que aludiu no
capítulo anterior. A filha morreu de repente, e o inopinado do desastre quase
levou a mãe à sepultura.
A afeição de Guiomar não se desmentiu nessa dolorosa situação. Ninguém
mostrou sentir mais do que ela a morte de Henriqueta, ninguém consolou tão
dedicadamente a infeliz que lhe sobrevivia. Eram ainda verdes os seus anos;
todavia revelou ela a posse de uma alma igualmente terna e enérgica, afetuosa e
resoluta. Guiomar foi durante alguns dias a verdadeira dona da casa; a catástrofe
abatera a própria Mrs. Oswald.
O coração da pobre mãe ficara tão vazio, e a vida lhe pareceu tão agra e deserta
sem a filha, que ela morreria talvez de saudade, se não fora a presença de
Guiomar. Nenhuma outra criatura poderia preencher, como esta, o lugar de
Henriqueta. Guiomar era já meia filha da baronesa; as circunstâncias, não menos
que o coração, tinham-nas destinado uma para a outra. Um dia, em que a
afilhada fora visitar a madrinha, esta lhe disse que a iria em breve buscar para
sua casa.
- Você será a filha que eu perdi; ela não me amou mais, nem eu já agora teria
outra consolação.
- Oh! madrinha! exclamou Guiomar beijando-lhe as mãos.
A baronesa estava assentada; Guiomar ajoelhou-se-lhe aos pés e pôs-lhe a
cabeça no regaço. A boa mãe curvou-se e beijou-lha ternamente, com os olhos
naquela filha que os sucessos lhe haviam dado, e o pensamento no Céu, onde
devia estar a outra, que Deus lhe dera e levou para si.
Pouco depois estabeleceu-se Guiomar definitivamente em casa da madrinha,
onde a alegria reviveu, gradualmente, graças à nova moradora, em quem havia
um tino e sagacidade raros. Tendo presenciado, durante algum tempo, e não
breve, o modo de viver entre a madrinha e Henriqueta, Guiomar pôs todo o seu
esforço em reproduzir pelo mesmo teor os hábitos de outro tempo, de maneira
que a baronesa mal pudesse sentir a ausência da filha. Nenhum dos cuidados da
outra lhe esqueceu, e se algum ponto os alterou foi para aumentar-lhe novos.
Esta intenção não escapou ao espírito da baronesa, e é supérfluo dizer que deste
modo os vínculos do afeto mais se apertaram entre ambas.
Ao mesmo tempo que ia provando os sentimentos de seu coração, revelava a
moça, não menos, a plena harmonia de seus instintos com a sociedade em que
entrara. A educação, que nos últimos tempos recebera, fez muito, mas não fez
tudo. A natureza incumbira-se de completar a obra, - melhor diremos, começá-
la. Ninguém adivinharia nas maneiras finamente elegantes daquela moça, a
origem mediana que ela tivera; a borboleta fazia esquecer a crisálida.
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A Mão e a Luva
Romansa"A mão e a luva" (1874), segundo romance de Machado de Assis, conta a história de Guiomar, moça de origem simples e ambiciosa que é cortejada por três pretendentes, com personalidade e caráter diversos. Em permanente conflito entre a emoção e a razã...