Não era a primeira vez que Mrs. Oswald aludia a alguma coisa que desagradava à
Guiomar, nem a primeira que esta lhe respondia com a sequidão que o leitor viu
no fim do capítulo anterior. A boa inglesa ficou séria e calada alguns dois ou três
minutos, a olhar para Guiomar, aparentemente buscando interrogar-lhe o
pensamento, mas na realidade sem saber como sair da situação. A moça rompeu
o silêncio:
- Está bom, disse ela sorrindo, não vejo razão para que se zangue comigo.
- Não estou zangada, acudiu prontamente Mrs. Oswald. Zangada por quê? Pesame,
decerto, que a natureza me não dê razão, e que uma aliança tão
conveniente, para ambos, seja repelida pela senhora; mas se isto é motivo de
desgosto, não pode sê-lo de zanga...
- Desgosto?
- Para mim... e naturalmente para ele.
Guiomar respondeu com um simples sacudir de ombros, seco e rápido, como
quem se lhe não dava do mal ou não acreditava nele. Mrs. Oswald não atinou
qual destas impressões seria, e concluiu que fossem ambas. A moça, entretanto,
pareceu arrepender-se daquele movimento; travou das mãos da inglesa, e com
uma voz ainda mais doce e macia que de costume, lhe disse:
- Veja o que é ser criança! Não parece que ainda em cima me zango com a
senhora?
- Parece.
- Pois não é exato. Isto são caprichos de menina mal-educada. Dei para não
gostar que me adorem... Minto; disso gosto eu; mas quisera que me adorassem
somente, não lhe parece?
E Guiomar acompanhou estas palavras com uma risadinha mimosa e uns gestos
de criança travessa, que destoavam inteiramente da sua gravidade habitual.
- Já sei, gosta de uma adoração como a do Dr. Estevão, silenciosa e resignada,
uma adoração...
E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na ponta dos
dedos, continuou por este modo, acentuando as palavras:
- Uma adoração como a que devia inspirar José, filho de Jacó, que era belo como
a senhora: "por ele as moças andavam por cima da cerca"...
- Da cerca? perguntou Guiomar, tornando-se séria.
- Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca porque... nem eu sei por quê.
Não core! Olhe que se denuncia.
Guiomar corara deveras; mas era a altivez e o pundonor ofendido que lhe
falavam no rosto. Olhou fria e longamente para a inglesa, com um desses
olhares, que são, por assim dizer, um gesto da alma indignada. O que a irritava
não era a alusão, que não valia muito, era a pessoa que a fazia, - inferior e
mercenária. Mrs. Oswald percebeu isto mesmo; mordeu a ponta do lábio, mas
transigiu com a moça.
- Meu Deus! disse ela. Parece que se zangou por uma brincadeira à-toa. Bem
sabe que eu não podia querer agravá-la; supô-lo é ofender-me a mim, - a mim,
que também lhe tenho afeto de mãe...
A última palavra aquietou o ânimo de Guiomar; ela tinha cedido ao impulso do
seu caráter altivo, mas a razão veio depois, e o coração também, que não era
mau. A inglesa, que possuía longa prática da vida e sabia ceder a tempo, uniu o
gesto à palavra e chamou-a com os braços para si. Guiomar deixou-se ir, um
pouco de má vontade, e a conversa teria acabado ali, se Mrs. Oswald não lhe
dissesse com a mais doce voz que daquela garganta podia sair:
- Convença-se de que eu sou importuna e indiscreta por afeição, e que a
felicidade desta família é toda a ambição da minha alma. Não pode haver
intenção melhor do que esta. Um conselho último, - último se me não consentir
mais falar-lhe nisto; - eu creio que a senhora sonha talvez demais. Sonhará uns
amores de romance, quase impossíveis? digo-lhe que faz mal, que é melhor,
muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os
sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir.
Guiomar cravara desta vez os olhos no chão, com a expressão vaga e morta de
quem os apagou para as coisas externas. As palavras de Mrs. Oswald responderlhe-iam
acaso a alguma voz íntima? A inglesa prosseguiu na mesma ordem de
idéias, sem que ela a interrompesse ou desse sinal de si. Quando ela acabou,
Guiomar estremeceu, como se acordasse; levantou a cabeça, e lenta, e
comovida, proferiu esta única resposta:
- Talvez tenha razão, Mrs. Oswald, mas em todo o caso os sonhos são tão bons!
Mrs. Oswald abanou a cabeça e saiu; Guiomar acompanhou-a com os olhos, a
sorrir, satisfeita de si mesma, e a murmurar tão baixo que mal a ouvia o seu
próprio coração:
- Sonhos, não, realidade pura.
Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de
quem as duas trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que
esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, - aquele moço que
apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio.
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte seis anos. Jorge chamava-se ele; não era
feio, mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece
a planta, disse o poeta, e essa máxima não é só aplicável à poesia, mas também
ao homem. Jorge tinha um lindo bigode castanho, untado e retesado com
excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam mais belos, se ele não os
movesse com afetação, às vezes feminina. O mesmo direi dos modos, que seriam
fáceis e naturais, se os não tornasse tão alinhados e medidos. As palavras saíamlhe
lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificência do autor. Não as
proferia como as demais pessoas; cada sílaba era por assim dizer espremida,
sendo fácil ver ao cabo de alguns minutos, que ele fazia consistir toda a beleza da
elocução nesse alongar do vocábulo. As idéias orçavam pelo modo de as
exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma côdea de gravidade
pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas leves e folgazãs.
Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um
pecado mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia
podiam servir-lhe nas mãos para fazer carreira em alguma coisa pública; ele,
porém, preferia vegetar à toa, vivendo do pecúlio que dos pais herdara e das
esperanças que tinha na afeição da baronesa. Não se lhe conhecia outra
ocupação.
Não obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicarse,
era generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor à velha parenta. A
baronesa, pela sua parte, queria-lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas
afeições principais, quase exclusivas.
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e
não menos de si própria. A baronesa também tinha os seus sonhos, como ela
mesma disse, e esses eram deixar felizes aquelas duas crianças. Jorge pela sua
parte estava disposto a estender o colo ao sacrifício; e, bem examinadas as
coisas, talvez amasse sinceramente a moça. A diferença entre ele e Estevão é
que o seu amor era tão medido como os seus gestos, e tão superficial como as
suas outras impressões.
Do que aí fica dito, facilmente compreenderá o leitor que, dos dois namorados, só
um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estevão andava-lhe nos
olhos, enchendo-os de maneira que ele não podia ver nada mais além de
Guiomar.
Ao cabo de duas semanas a situação de Estevão podia dizer-se menos má; na
opinião dele era excelente. A baronesa soube quem ele era; Guiomar contara-lhe
tudo; mas a inglesa, não menos que a observação própria, lhe mostrou que
nenhum perigo corria Guiomar, e excluído o perigo, restavam as boas qualidades
do bacharel, que de todo lhe caiu em graça. Mrs. Oswald navegou nas mesmas
águas mansas. O próprio Jorge, naturalmente porque confiava em si, não temeu
do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancelos da sua gravidade. Que
admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez?
Aquele bom rapaz tinha a salutar crendice da esperança, em que muita vez se
resumem todas as bênçãos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era,
mas bem pouco bastava a contentá-lo. A imaginação multiplicava os zeros; com
um grão de areia construiria um mundo. A afabilidade de uns e a cortesia de
outros, tanto bastou para que ele se julgasse quase no termo de suas aspirações;
e posto não lhe desse Guiomar uma só das animações de outro tempo, - que
aliás tão frágeis eram, ainda assim acreditou ele piamente que o amor nascia, ou
renascia, naquele rebelde coração.
Guiomar, no meio das afeições que a cercavam, sabia manter-se superior às
esperanças de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas igualmente
impassível para todos, movia os olhos com a serenidade de isenção, não
namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se quisesse, a arte de Armida;
saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles fossem impacientes ou
tíbios; faltava-lhe porém o gosto, - ou melhor, sobrava-lhe o sentimento do que
ela achava que era a sua dignidade pessoal.

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A Mão e a Luva
Storie d'amore"A mão e a luva" (1874), segundo romance de Machado de Assis, conta a história de Guiomar, moça de origem simples e ambiciosa que é cortejada por três pretendentes, com personalidade e caráter diversos. Em permanente conflito entre a emoção e a razã...