Duas Voltas no Quarteirão

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Era mais um dia como qualquer outro. Voltava do trabalho tão cansado quanto angustiado, em virtude das horas que se desenrolavam penosamente ao longo do dia. Este era um ciclo interminável, de todas as semanas e meses, do qual não lograva me libertar. No passado, acreditava que o frescor de todos os dias da juventude, alegres e vivos, se manteria para sempre; acreditava que a expressão carrancuda, de tantos e tantos "mais velhos" que me cercavam, jamais me atingiria; Acreditava por fim que para ser livre, ser "independente", bastaria ter estabilidade financeira. Não foi bem assim. Nem comigo, nem com meus pares de trabalho, o que à primeira vista me fizera supor que a desesperança seria o trágico destino de numerosa parcela de indivíduos ativos, criativos e certamente competentes, mas que depositam mais fichas do que deveriam no campo profissional.

Passos lentos no retorno para a casa, embalados pelo suave zunido do vento e pelo charme discreto do sol, que já se despedia. Se ali, naquele entardecer, começava minha trégua de atividades externas, internamente, todas as noites, muitos questionamentos me invadiam. Nada parecia suficientemente estimulante, tudo aparentemente fora do lugar, expectativas quebradas e no dia seguinte tudo recomeçaria de novo. Logo eu que gostava tanto do que fazia? Logo eu que todos diziam ser tão promissor? Como pude me converter algo tão maquinal e pouco original? É que o desânimo foi se enraizando aos poucos e não consegui detê-lo. Comprei um refrigerante num quiosque em frente a praia, caminhei um pouco e sentei num desses bancos de cimento que comumente se encontram em praças. Ver o quebrar das ondas sempre me acalmou e me pus a pensar sobre qualquer coisa que me distraísse dos meus sentimentos, até que fui interrompido por um "tudo bem?".

Olhando para minha direita encontrei sentado no banco um senhor, aparentando seus setenta e poucos anos, de cabeça branca, calça capri, blusa de botão, óculos escuros, uma vara de metal e uma coleira vazia. "Tudo bem?" Ele insistiu. "Tudo bem!" Resposta clássica, que a gente profere mesmo para os mais próximos, quase sem pensar no significado. "Tudo bem" (seja uma pergunta ou afirmação) muitas vezes tem o peso de um "Oi!". Quem pergunta nem sempre está realmente interessado em saber como você está e quem responde, muitas vezes, o faz por automatismo : "Tudo bem!". Contudo, naquela voz um tanto trêmula, que os anos já tinham feito perder o vigor, havia uma entonação que a muito não percebia, demonstrando certa expectativa quanto à minha resposta. "É que não me parece muito bem, filho... posso ajudar em algo?". Fiquei surpreso com a continuação da conversa. Por que o interesse? "Não... tudo bem." e para não ser seco demais, completei: "O senhor é bem silencioso, nem o vi chegar!". Após breve e discreto sorriso me explicou que estava ali o tempo todo. "Serio?". "Sim, notei quando chegou. Passos lentos . Olhar disperso no horizonte, respiração salpicada de suspiros... imaginei que talvez estivesse triste. Por isso perguntei se estava tudo bem. Desculpe-me se fui intrometido".

Confesso que me surpreendi com a análise. Aquele senhor tinha acertado, sem dúvida. Não é algo tão comum contar sua vida pra um estranho na rua, pelo menos não pra mim, então de certa forma "subi minha guarda", afim de num primeiro momento não prosseguir com a conversa. Entretanto, a entonação, o próprio jeito de se colocar foram me cativando aos poucos. "To meio chateado com algumas coisas, mas bobeira, nada demais daqui a pouco passa." E me pus em silêncio, tomando meu refrigerante. Ele redarguiu: "Quando não tem importância, a gente não dá importância, filho. Não se chateia. Entende?". Tinha lógica o que ele dizia, mas não sabia bem o que responder, porque propositalmente tinha atenuado a situação, para não me expor."Entendo".

Ao enfiar as mãos nos bolsos deixou cair umas moedinhas. "Por gentileza pode pegar para mim, filho? Como deve ter notado, eu não enxergo". É, eu tinha notado sim, mas confesso a vocês que essa informação se apagou ao longo da conversa, de tão perspicaz que aquele senhor era. Inclinei-me, sem levantar do banco, para catar as moedas. Esbarrei na barra metálica e, ao me reerguer, notei novamente a coleira vazia.

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