Capítulo 2: O Sítio

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Anos depois, em julho de 1965, Benta recebe a notícia do falecimento seu tio-avô Carlos, que morava no interior paulista. Citada no testamento, Benta deve comparecer à sua leitura. Enquanto as filhas ficam aos cuidados de Nastácia, Benta viaja ao sítio de Carlos, próximo a um vilarejo conhecido como Arraial dos Tucanos, no município de Taubaté. No trajeto da viagem, Benta se recorda de sua infância no sítio de seu tio-avô. Apegara-se, particularmente, ao bem-te-vi Fubá, criado solto (Carlos não acreditava em gaiolas; para ele, os pássaros deviam ser livres). A então pequena Benta estendia a mão coberta de sementes de girassol e o pássaro vinha. Fubá deixava Benta lhe fazer cafuné. Em seguida, cantava numa afinação primorosa, até em comparação com outros de sua espécie. Como que em sincronia com suas lembranças, um bem-te-vi aparece voando paralelamente ao trajeto do ônibus, próximo à janela de Benta. Ela sorri, considerando aquilo um bom presságio.

Ao chegar à propriedade, mais lembranças lhe voltam. O pé de jabuticaba (Benta chega a sentir o gosto da fruta em sua boca vazia), a varanda onde Carlos lhe contava histórias de sacis, lobisomens, caiporas e outras criaturas. Uma em particular lhe chamara a atenção: o curupira. "Como alguém consegue andar direito com os pés virados para trás?", questionava-se a Bentinha de nove anos. Como que lendo seus pensamentos, o tio-avô respondia:

– Mágica!

Durante a leitura do processo de partilha, é revelado que os poucos herdeiros necessários que sobraram (boa parte já havia falecido) dividiriam a grande fazenda de Carlos próxima à divisa com Pindamonhangaba. A Benta é revelado que ela acaba de herdar o próprio sítio onde a reunião acontece, batizado por Carlos como Sítio do Picapau Amarelo (com a palavra "Picapau" grafada assim mesmo, sem hífen, para melhor caber na placa de madeira junto ao portão de entrada).

Passeando pelo quintal do sítio ao final da tarde, Benta se depara com uma visão que não tinha há tempos: o magnífico pôr-do-sol visto do Sítio, tingindo o céu com tons de laranja, amarelo e vermelho, com as nuvens em um tom levemente rosado.

De volta à capital, Benta informa Nastácia da novidade. Pensara mesmo em ter um lugar mais tranquilo para morar com Nastácia e as meninas, o clima de cidade grande já não tinha a mesma tranquilidade de anos atrás. Antes de qualquer coisa, decide consultar Nastácia. Sem a concordância dela, não se mudaria e pensaria em outro destino para dar ao sítio.

– Quando nos mudamos?– Pergunta Nastácia, sorrindo.

O fato é que nada havia que prendesse Nastácia à capital paulista. E nem ao Rio de Janeiro onde nascera. Desde que sua mãe falecera, seu único vínculo era com Benta e as meninas.

Benta decide, entretanto, esperar o final do ano letivo das filhas. Mudar às pressas, no meio do ano, traria transtornos burocráticos desnecessários na transferência de escola. Além disso, elas teriam mais tempo para se preparar para a mudança. Numa visita rápida ao sítio em um feriado prolongado, Benta conheceu Barnabé, o caseiro da propriedade. Um jovem negro simpático, de uns vinte e cinco anos, chapéu de palha e cachimbo na boca. Ele mostrou todo o sítio a Benta. Em seguida, acertaram que ele tomaria conta do local e o prepararia para a mudança.

Eis que, em janeiro do ano seguinte, elas finalmente se mudam para o sítio. E a vida delas nunca mais seria a mesma...


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Sítio do Picapau Amarelo: O inícioOnde histórias criam vida. Descubra agora