Ao avistarem a mula-sem-cabeça, Antonica e Emília gritam de pavor e fogem desesperadamente da criatura. Correm sem se importar com para onde estão indo, o que lhes importa é escapar da mula. Entram pela mata para tirar vantagem dos galhos das árvores: pequenas, elas passam por baixo da maior parte deles, enquanto alguns dos galhos mais baixos retardam a criatura. Elas se embrenham por alguns arbustos, até avistarem um casebre de madeira abandonado, no qual conseguem entrar pela porta entreaberta. Com o luar entrando pela janela, elas conseguem ver um pequeno móvel de madeira, que empurram para bloquear a porta.
No sítio, após procurarem em todos os cantos da propriedade, Benta e Nastácia constatam o que mais temiam: Antonica e Emília entraram na mata e, provavelmente, se perderam. Munidos de lanternas, daquelas grandes, seguradas por alças, Nastácia e Barnabé saem, em direções diferentes, para procurar as meninas, enquanto Benta permanece no sítio, para o caso de as filhas voltarem. Judite, esposa de Barnabé, faz companhia a Benta.
Por não conhecer a mata tão bem quanto Barnabé, Nastácia carrega consigo, além da lanterna, um volumoso novelo, atravessado por uma haste de madeira, atada à sua cintura por duas tiras de tecido firmemente amarradas. Ela amarra uma das pontas numa árvore próxima aos limites do sítio e segue desenrolando-o à medida que avança à procura das meninas. Como a temperatura caíra um tanto ao anoitecer, Nastácia usa sobre os ombros um grande xale azul de crochê, cujo verdadeiro tom não pode ser percebido com clareza àquela hora da noite (a combinação da luz alaranjada da lanterna com o luar distorce ainda mais a percepção).
Após alguns minutos de caminhada, ela avista um clarão em meio a árvores à frente. Pensando tratar-se da lanterna do caseiro, ela o chama:
– Barnabé! Barnabé, é você?
Sem ouvir uma resposta, ela decide se aproximar, continuando a chamar por Barnabé. Chegando a meia distância do clarão, ela ouve um ruído estranho, que certamente não é o das botas do caseiro.
– Quem está aí? Você viu duas meninas perdidas pela mata? Eu estou procurando por elas.
Novamente, nenhuma resposta. Ao chegar mais perto, ela ouve um relincho alto e estridente. Embora tenha se assustado momentaneamente, ela logo racionaliza que deve ser apenas uma montaria que estranhou sua voz– ou cujo dono fez algum movimento brusco ou impensado– e continua se aproximando.
Ao se encontrar a poucos metros de distância da fonte do clarão porém, o horror toma conta de Nastácia: a luz vem de uma criatura com corpo de mula e chamas no lugar da cabeça, que emite um relincho ainda mais estridente que o anterior. A mula-sem-cabeça se volta para Nastácia e começa a avançar.
Nastácia corre em desespero, o mais rapidamente que consegue. Percebendo que a mula se aproxima, Nastácia decide escalar a árvore mais próxima. Ela consegue se posicionar em um galho firme, numa altura segura.
Embora a mula-sem-cabeça seja incapaz de subir na árvore, a criatura fica rondando a árvore onde Nastácia se encontra. "Talvez ela acabe se cansando e vá embora", pensa Nastácia. "Mas e se não for? Bem, o raiar do sol certamente há de afugentá-las. Mas ainda vai demorar. E as meninas? E se Barnabé não encontrá-las? Pensa, Nastácia, pensa!"
Como enfrentar uma mula-sem-cabeça? Um combate físico, certamente, está fora de cogitação. Despistar? Não saberia como. Subitamente, lembra-se de uma frase de Benta: "O conhecimento é uma arma poderosa". Nastácia busca na memória informações que ouvira e lera sobre a criatura. Afinal, se as criaturas descritas nas lendas existem, os pontos fracos nelas descritos, muito provavelmente, também são verdadeiros.
De acordo com as lendas, a maldição da mula-sem-cabeça pode ser quebrada de duas maneiras: arrancando-lhe ao menos uma gota de sangue; ou removendo-lhe o freio. Nastácia arranca uma parte mais fina e pontiaguda de um galho próximo. Ela posiciona sua arma improvisada em paralelo a suas costas, prendendo-a às tiras de tecido que mantêm o novelo atado a si.
Enquanto examina, com a lanterna, um local mais apropriado para descer, ela avista uma árvore vizinha, mais jovem e menos robusta que aquela em que se encontra. Nessa árvore há um galho baixo, fino, aparentando ser flexível. "Vai me servir melhor do que esse que carrego nas costas", pensa Nastácia, que decide, entretanto, manter o primeiro galho consigo como medida de segurança (vulgo "Plano B").
Nastácia, apesar de apavorada, respira fundo e desce da árvore. Afinal, com as meninas ainda perdidas, ela não se permite fraquejar. Nastácia, habilmente, dobra para trás o galho fino e pontiagudo da árvore vizinha, posicionando-se à frente dele para escondê-lo. Ela grita para chamar a atenção da criatura, que avança velozmente em sua direção.
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Sítio do Picapau Amarelo: O início
Fiksi PenggemarAntes de Pedrinho, de Narizinho, do sabugo Visconde e da boneca Emília. Esta história é uma prequel do Sítio como o conhecemos, adicionando alguns elementos e conexões, além de preencher algumas lacunas deixadas nas outras mídias: como Benta e Nastá...