Capítulo 9: Momentos didáticos sobre a mitologia grega

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Para relaxar após os tensos acontecimentos, Benta e Nastácia se entregam a um aconchegante banho morno de banheira. Enquanto passa xampu nos cabelos de Nastácia, Benta elogia a estratégia de orientação da companheira:

– Usar um novelo para não se perder foi uma ótima ideia, meu amor!

– Aprendi com as histórias da minha avó por parte de mãe. Na verdade, muitas das histórias que eu conto para as meninas, eu aprendi com ela.

– Isso me fez lembrar o Fio de Ariadne.

– Quem?!?

– Ariadne, da história do Minotauro.

– Ah, sim, da mitologia grega! Você me falou dele por alto, mas não mencionou essa tal Ariadne.

Enquanto enxágua os cabelos da amada para remover o xampu, Benta, que muito aprecia contar histórias, decide contar a de Ariadne.

– A história tem detalhes demais, mas vou tentar resumir para não ficar muito longa: o Minotauro habitava o centro um labirinto construído pelo arquiteto Dédalo, na ilha de Creta. O grego Teseu, querendo vingar a morte de jovens gregos nas mãos do Minotauro, decidiu dar um fim ao monstro. Ao chegar a Creta, Teseu se deparou com Ariadne e se encantou por ela. Após Teseu revelar seu plano de vingança, Ariadne decidiu ajudá-lo, se ele a levasse à Grécia e se casasse com ela. Ele aceitou e ela deu a ele uma espada e um novelo. Ela segurou uma das pontas do novelo, que foi sendo desenrolado por Teseu dentro do labirinto. Teseu encontrou o Minotauro e, ao fim de uma tensa batalha, matou a terrível fera, depois seguiu o fio do novelo de volta até Ariadne.

Nastácia fica fascinada pela história. E pela desenvoltura de Benta ao contá-la. Durante a narrativa, visualizou cada detalhe. Embora Nastácia também goste de contar histórias e o faça bem, tal habilidade é ainda mais proeminente em Benta, em grande parte lapidada por seu trabalho como professora. Nastácia se vira de frente para a companheira.

– Você tem um dom maravilhoso de contar histórias, Bê!

– E você se saiu uma heroína que não deixa nada a dever a Teseu. Usou o novelo e, mesmo sem espada, enfrentou uma criatura monstruosa, libertou-a da maldição e resgatou nossas filhas.

O rosto de Nastácia se ilumina de felicidade. Sente-se feliz e reconfortada toda vez que Benta se refere às meninas como "nossas filhas". Mesmo antes de começar a namorar Benta, Nastácia já se afeiçoara a Antonica e Emília e ajudava nos cuidados com elas. A afeição e os cuidados cresceram até se tornarem plenamente maternais.

– Eu estava apavorada... Mas foi por elas que eu superei o medo.

Benta olha Nastácia com ternura e lhe acaricia o rosto.

– Eu te amo cada vez mais!

Nastácia responde segurando o rosto de Benta com as mãos e dando-lhe um beijo caloroso nos lábios. Benta retribui com ainda mais intensidade. O desejo que as toma, junto ao conforto da água morna, faz com que elas realizem, na própria banheira, as intimidades de casal que costumam reservar à cama.

Na manhã seguinte, logo após o café da manhã, Barnabé e Judite vão ao Arraial dos Tucanos. Após deixar as meninas na escola, Barnabé faz compras na venda do Elias, enquanto Judite parte para uma missão mais complexa (voltaremos a este assunto mais adiante).

No sítio, Lúcia se oferece para cuidar do jardim. Benta consente e lhe mostra onde ficam o regador e os outros equipamentos de jardinagem. Enquanto a hóspede começa a regar as plantas, Benta se dirige ao piano, na sala, e Nastácia vai à biblioteca e seleciona um livro: Mitologia Grega. Após uma rápida lida no índice, ela localiza o capítulo relativo ao Minotauro e inicia uma leitura atenta. Ficara curiosa desde que Benta lhe contara a história do Fio de Ariadne. Como Benta lhe disse que resumira a história e deixara detalhes de fora, Nastácia resolveu pesquisar o que ficou faltando.

Lúcia sente um enorme prazer ao cuidar do jardim, inclusive pelo fato de PODER fazê-lo. Ao sentir a terra, a água e as flores em suas mãos, bem como o sol em seu rosto, ela se alegra por ser humana novamente e vivenciar seus sentidos em sua plenitude. A coloração das flores lhe parece especialmente viva. Lúcia é, novamente, dona do próprio corpo e do próprio destino. 

Benta seleciona, em seu livreto de partituras, o Estudo Opus 10, nº 1, de Frédéric Chopin, apelidado de "Estudo queda d'água" (La cascade, em francês). O andamento da peça, em dó maior, é allegro (italiano para alegre, vivaz), ou seja, um andamento leve e ligeiro. Condizente com o estado de espírito de Benta: alegre e leve. E o apelido da obra lhe traz à lembrança os agradáveis momentos na banheira na noite anterior. Após um breve alongamento de braços e dedos, Benta põe-se a tocar a peça ao piano.

Na biblioteca, Nastácia deixa sua mente vagar pelas palavras e é apresentada à história do rei Minos, que se tornou governante da ilha de Creta após o falecimento de seu pai, Astérion. Seu reinado, entretanto, foi contestado. Minos, então, rogou ao deus do mar, Possêidon, que lhe enviasse um sinal de aprovação ao seu reinado. Possêidon, em resposta, fez surgir do mar um touro branco. Minos deveria sacrificar o animal em homenagem a Possêidon, mas quis manter o animal para si e sacrificou outro no lugar. Para se vingar, a divindade marinha fez com que a esposa de Minos, Pasífae, se apaixonasse pelo touro. Ela pediu a Dédalo que construísse uma vaca de madeira oca, para que ela pudesse se esconder dentro.

Neste momento da leitura, Nastácia arregala os olhos em espanto. Ela volta a ler o último trecho, como que duvidando do que havia lido, e continua a ler mais algumas linhas.

Na sala, tendo terminado o "Estudo queda d'água", Benta procura, em seu folheto de partituras, alguma música que lhe agrade. Antes que possa se decidir, é interrompida por Nastácia.

– Benta, me confirma uma coisa.

– Pode falar.

– Eu comecei a ler a história do Minotauro. Eu cheguei na parte da Pasífae com a vaca de madeira. É impressão minha, ou o texto dá a entender que ela e o touro, eles...?

– É exatamente isso que você está pensando, Nastácia.

Nastácia faz uma careta de repulsa.

– CREDO, BENTA! Que nojo!

– Bem-vinda ao mundo da mitologia grega, Nastácia. Espere até ler sobre "Leda e o Cisne"...

– Você fala como se não se chocasse.

– Eu me choquei, sim, quando li pela primeira vez. Mas são tantas bizarrices, situações surreais... E ainda, famílias disfuncionais, traição, ciúme, castigos cruéis... São tantas situações problemáticas, que o espanto por uma única situação específica acaba perdendo o impacto.

– Entendo. Como dizia minha avó, "desgraça pouca é bobagem".

– Um outro ângulo para se ver a mitologia é a análise do pensamento de um povo numa determinada época. O que inclui a falta de conhecimento científico, que leva a equívocos na narrativa. A própria história do Minotauro. Uma criatura como aquela seria geneticamente impossível, mesmo que alguém tivesse a infeliz ideia de tentar.

– Cromossomos de espécies diferentes são incompatíveis. Eu li sobre isso.

– E tem o Ícaro, filho do Dédalo. Você ainda não chegou nessa parte. Ele constrói asas artificiais, cujas penas são coladas com cera. A história diz que, quando ele voa alto demais, o sol derrete a cera das asas, causando sua queda. Hoje se sabe que as asas, na verdade, congelariam.

– Também aprendi sobre isso. É o ar da atmosfera que mantém o calor do sol. Quanto maior a altitude, menor a quantidade de ar. E menor a temperatura.

Benta sorri, animada com a conversa. Ter uma parceira com quem trocar ideias é estimulante. Embora Nastácia não tivesse tido o mesmo tempo de educação formal de Benta, sempre foi extremamente curiosa e ávida por aprender. Além disso, a sabedoria de vida, a experiência prática e as histórias transmitidas oralmente por sua família lhe deram uma base de conhecimento para além da educação formal.

Subitamente, o telefone toca. Nastácia atende. Do outro lado da linha, Judite traz novidades.   

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