Fuga

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Moro perto da lanchonete, mas nunca cheguei tão rápido assim em casa. Nem me dei conta da velocidade que devo ter atingido. Preciso ser mais cautelosa. Tenho aversão a altas velocidades e sinto um calafrio sem precedentes agora. Pura autopreservação ignorada por mim há pouco, presumo. O importante é que cheguei bem e em segurança.

Vivo advertindo Dave sobre dirigir rápido demais, buscando uma adrenalina sem sentido, apenas desafiando o perigo e sei que ele, pelo menos quando está comigo, controla essa paixão por velocidade. Fui imprudente por realmente ter agido no impulso para sair daquela situação. Ele definitivamente me tirou do sério por nada!

Acho que neste exato momento eu mesma estou querendo me convencer disso. O fato é que tenho uma necessidade de compreender aquela eletricidade percorrendo o meu corpo, que só de lembrar, me faz querer sentir novamente e prolongar aquela sensação.

Teria Dave percebido isto antes de mim?

Houve certos momentos que esse ciúme exagerado tinha lá o seu charme. Ficava evidente o quanto seu amor por mim é absolutamente tudo para ele. Deixava claro para todos, como um alerta máximo, manterem distância. No entanto, sinto-me sufocada às vezes que nem a bandeira do mais intenso dos sentimentos, o amor, seria capaz de apaziguar meu coração. Tenho a necessidade de me relacionar com as pessoas, sem sexo definido, de uma forma natural, leve, passa a ser essencial para mim. Essa bandeira de amor declarado agora parece mais uma obcessão. Há uma barreira tênue entre amor e obcessão e ele já a ultrapassou. É a primeira vez que admito esta avaliação. E o que estava mudando?

Não gosto de discutir com Dave pelo ciúme que sente toda a vez que uma amizade masculina o assombra, mas dessa vez foi diferente num grau que eu mesma preciso entender.

Estou tão consumida em meus pensamentos que já estou em meu quarto e nem me dei conta de ter passado pela porta de entrada da casa.

Meu celular não para de vibrar e isso está me enlouquecendo! Nem preciso olhar no visor para saber quem é. O atiro sobre a cama e vou em direção à sacada do meu quarto. Abro as cortinas e as portas francesas que tanto amo para que não somente a luz natural possa entrar com toda sua intensidade, mas sentir também o calor e o sopro sutil e refrescante da brisa sobre a minha pele. Esta é uma das poucas sensações que aprecio, sendo capaz de permanecer inerte por horas sem me cansar, apenas sentindo a energia que consigo absorver. Muitas vezes, só saio desta condição me rendendo ao "pôr do Sol"!

Volto para o meu quarto ainda consumida em meus pensamentos. Ao olhar para o despertador em meu criado-mudo, constato que são apenas 5:00 PM. Preciso de uma distração. Por que estou tão intrigada?

Como queria conversar com a minha mãe agora, mas o voo dela saiu a menos de uma hora e a viagem até o Japão será longa. O compromisso a trabalho desta vez será maior do que o habitual. Não que ela seja a pessoa que conto em detalhes tudo o que se passa comigo, mas falar sobre amenidades, cantar, dançar, ou simplesmente rir de nós mesmos seria proveitoso, e devo admitir, minha mãe supera a minha melhor amiga, Anne, neste quesito.

Estou exausta! Já dormi mal na noite anterior, como se ansiasse pelo dia de hoje e por qual motivo? Olho para o celular que de tanto vibrar, está "pulando" sobre a cama a ponto de quase cair, por ter se deslocado um bocado como se tivesse vida própria e quisesse me chamar a atenção e conseguiu. Agora minha reação, claro, é de impedir sua colisão no assoalho de madeira que lhe causaria pela altura talvez pequenos arranhões ou trincasse a minha película de vidro pela décima vez, considerando a probabilidade imensa de que ele cairia de tela para baixo, assim como pão com manteiga. Embora já tivesse aprendido a trocar a película sozinha e fazendo um estoque em casa, não queria este retrabalho, então, atiro-me sobre a cama e o desligo, sem ao menos olhar os detalhes de informações na tela. O meu reflexo agora na tela preta me faz ponderar sobre momentos atrás antes desta divagação sem sentido do meu companheiro inanimado que acabei de dar vida.

Nunca tinha sentido algo tão intenso quando encontrei aquele olhar na lanchonete de um desconhecido e neste momento, só de me lembrar disso parece que aquela sensação voltou.

É uma espécie de encanto: "Matt"!
Como um rosto desconhecido até então poderia ser tão familiar e sua presença me atrair tanto?

Aquilo não era certo, era? Estou agindo como se tivesse traindo o Dave que tanto amo, e por Deus, foi apenas um encontro casual! De mais a mais, fiquei receosa: lindo por natureza e de uma "cantada" perspicaz.

Do jeito que me atraiu, imagino a quantidade de garotas que ele deve conquistar por dia com aquelas cantadas... Embora eu queira saber mais sobre ele, não devo, porque Dave vai inevitavelmente surtar. Aliás, já surtou e em tempo recorde desta vez.

Ou devo sim, afinal aquele olhar transmitiu sinceridade e uma energia boa. Estreitar uma amizade parece ser promissor e isso só me faria bem. Uma coisa é certa, a amizade poderia rolar de forma natural, sem que a intimidação de Dave pudesse interferir ou manipular, porque primeiramente ele seria meu amigo antes de ser amigo de Dave. Só conheço o lado feminino de uma amizade sincera hoje em dia, por ser a de Anne. Dave é, sem dúvida alguma, o meu melhor amigo, mas às vezes ele não é tão imparcial como deveria.

Respiro fundo me espreguiço lentamente em um estado de relaxamento onde o sono é convidativo, inevitável e seria muito prazeroso...

A sensação é de quase adormecer quando a campainha toca uma, duas, três, quatro, cinco vezes e percebo pela insistência que, quem quer que seja não vai desistir assim tão fácil, e levanto contrariada para atender. No entanto; uma vez de pé, a certeza de ter uma companhia agora, será muito melhor. Só pode ser o Dave! Anne só volta daqui a longos dois dias da casa de seus pais no interior. Ou será que veio antes? Bem improvável. Sendo o Dave, melhor a gente se acertar logo. Precisamos retomar nossos planos de ficar juntos hoje. Quero ficar numa boa com ele.

Ao abrir a porta me surpreendo... Você?

Q1Onde histórias criam vida. Descubra agora