Ele

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Estou atrasado mais uma vez, todo dia é uma grande luta para sair da cama. Minha mãe veio no meu quarto 4 vezes, e eu sabia que na 5ª ela começaria a me dá lição de moral. Falaria em como meu avô acordava as 4 da manhã para ir trabalhar, que ele não tinha o luxo que eu tenho, não tinha estudado para ajudar a família e, que eu tenho tudo o que eu quero mas não me esforço para pelo menos ter uma carreira assim como a do meu pai. Para não gerar discussões logo cedo levanto da cama e caminho até o banheiro. Esqueço que tenho um cão e acidentalmente piso em seu rabo, um sentimento de culpa cresce dentro de mim e peço desculpas ao meu melhor amigo.
Lavo meu rosto, raspo uns pequenos pelos que insistem em se rotular barba, me perfumo e troco de roupas. Tudo isso na companhia de King.
Ei King, o que acha de um corte de cabelo novo? - Por mais imaturo que seja eu estar conversando com um cão, ele é meu único amigo, tirando a "brócolis" e a Rêzinha. King rosna para mim.
O que? Gosta de toda essa cabeleira? - Ele balança o rabo como se fosse uma afirmação — Ok, sem cortes de cabelo, certo? - King vem até mim, ele é um golden retriever bem grande, faço uma porção de carinho nele e ele lambe minha cara como agradecimento. Sento na minha cama e pego meu celular, vejo as horas, são 5:40, levanto e vou até a cozinha. Minha mãe está fazendo panquecas de chocolate, ela sabe que eu amo.
Mãe, que horas são? Acho que meu relógio está errado, aqui diz que são 5:41.
— Bom dia para você também meu filho. Bom, agora são... 5:41, não, seu relógio está certinho.
— Como assim? Você me acordou 1 hora antes de meu despertador tocar?!
— Sim. Assim você terá mais tempo para se arrumar, pegar tudo o que precisa e não ficará atrasado. Ah, e a partir de hoje você tomará o coletivo, seu pai precisa descansar e eu troquei de turno no hospital. Você irá e voltará de coletivo! 
Minha cara de indignação foi tamanha que ela veio até mim e levantou meu queixo com a mão para fechar minha boca, plantou um beijo na minha testa, disse que me amava e foi saindo para trabalhar. Corri atrás dela:
Mãe! Eu não sei qual ônibus pegar e nem onde pegar!
— Ah, deixei o nome do ônibus e da rua que tem o ponto, fica a duas quadras daqui, o papel está no quadro de recados. Você vai descer na pracinha perto da casa do tio Joaquim e aí você saberá como chegar, estou certa?
Sim - disse frustado - você poderia me dar uma carona?
Você sabe que o hospital fica do lado oposto, não é? E além do mais, ainda não é nem 6 horas. Vá, tome seu café da manhã, escove seus dentes, não esqueça de absolutamente nada, porque eu não irei levar nada para você e, não se atrase, o coletivo não ficará esperando por você! Te amo meu filho.
— Mas mãe... - Ela foi embora! Sem olhar para trás!
Tomei meu café na companhia de King, depois fui escovar os dentes e me veio um déjà vu do sonho que tive. Comecei a rir sozinho com a lembrança, corri pegar o celular e mandar uma mensagem para a "brócolis", ela iria morrer de rir. Terminei de me aprontar, pequei tudo o que precisa, e até coisa que não precisaria. Alimentei King e, fui até o quadro de recados, lá estava um papel com o nome do coletivo, o nome da rua e uma nota de 10 reais. Minha mãe estava realmente querendo que eu seja um pouco mais independente e não precise dela para tudo e, por mais frustado que eu esteja, agradeço ela mentalmente por sair da zona de conforto e me tratar como uma "pessoa normal". Saio de casa 6:35h. Esqueci de perguntar para minha mãe o horário do coletivo, mas talvez ela não saiba de tudo, resolvo então caminhar depressa com medo de não conseguir chegar a tempo. As 6:40h o coletivo vem subindo a rua, no ponto tem 3 senhoras e um jovem, que parece está indo para faculdade, deixo todos entrarem primeiro e então embarco. É como entrar em um cacho de abelhas, vários zumbidos, é como estar dentro de um loja de perfumes, é desnorteante, é um pequeno espaço apertado onde todo mundo está olhando para você, e você se sente indefeso com tantos olhares. Tento me conter, não posso ter uma crise dentro do coletivo, seria vergonhoso. Começo então a fazer algo que me acalma, passar as mãos na barra da camisa, esperando pacientemente que eu chegue logo no meu destino, sem precisar de bombeiros e minha mãe tentando fazer com que eu me acalme.

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