Fevereiro IV

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O primeiro – e talvez único – esporte que eu praticava desde criança e que realmente gostava era natação. Minha mãe me colocou para aprender bem cedo, eu devia ter uns três anos, sei lá. Não saí mais da água desde então. Quando eu tinha uns dez, onze, a gente começou a viajar para participar de competições, mas para não atrapalhar meus estudos minha mãe achou melhor que deixássemos isso para depois. Eu nem pensava em fazer nada “profissionalmente” mesmo, então não liguei muito. Foi na mesma época em que comecei a nadar com a Maria. Ela estava aprendendo e eu ajudava e ela me fazia companhia no clube. A gente se encontrava de vez em quando para nadar juntos, mas depois que as suas aulas propriamente ditas se acabaram, nós íamos ao clube só para ficar sentado em volta da piscina e jogar conversa fora.

A gente dizia que era por pura preguiça, mas eu sabia que era porque ela morria de vergonha de usar biquíni em público (e em particular também, já que nem na casa da minha avó ela entrava na água direito). Quando íamos “nadar', as mechas que ela colocava no cabelo preto espetado eram sempre de cor azul – vários tons, mas sempre lembrando a água. Nós gostávamos de ir ao clube e ela não podia negar nem disfarçar isso nem com a cor do cabelo. Nadar, aliás, era uma válvula de escape muito útil pra nós dois, já que podíamos ficar sozinhos, longe do colégio e das nossas famílias.

Eu podia ir caminhando até o clube, mas ela tinha que pegar carona com alguém, já que a mãe não a deixava andar de ônibus e nós morávamos em bairros diferentes. Ambos achávamos estúpido essa ideia de termos que ser “carregados” de cima pra baixo – não era como se fôssemos crianças mais. Não íamos nos perder ou coisa assim! Mas toda as vezes que a Maria começava a discutir algo sobre “independência” com a mãe elas acabam brigando. Motivo? Adivinhem quem era mais cabeça dura?

Enfim. Nós acabamos indo ao clube na segunda de carnaval, já que no domingo ele estaria fechado. A escola estaria de recesso até a outra semana e nós não tínhamos muita coisa o que fazer. Quer dizer, eu não tinha. A Maria era abarrotada de atividades extracurriculares.

– Tem o reforço de matemática, que não sei por qual motivo minha mãe ainda insiste que eu faça, toda terça e quinta às cinco. O inglês, segunda e quarta às seis e meia. A aula de pintura às sextas às seis, que é quando minha mãe chega do trabalho e eu tenho que ir com ela... - ela enumerou e eu fiz uma careta.

– Você tem tempo pra respirar? Quero dizer, a gente tem aula o dia todo. Como assim?!

Ela suspirou e rolou os olhos. Era assim mesmo. Os pais da Maria eram meio controladores. Ela não podia ter tempo de folga, senão ia pensar em “fazer besteira” - nas palavras da mãe dela pra minha, é sério.

– Você vai começar o semestre do seu inglês agora depois do carnaval, né?

– É – minha vez de suspirar – Semana que vem. Terça e quinta.

– Depois da Educação Física? Seu cursinho fica ali perto, não fica? - fiz que sim com a cabeça. Ficava a uns sete quarteirões, mas dava pra ir andando sem problemas. Era ao lado de um shopping ainda por cima.

– É de três e meia às cinco, aí minha mãe sai do trabalho ali perto e a gente aproveita e volta junto.

Ela fez que sim com a cabeça e nós voltamos a ficar em silêncio, sentados na beira da piscina, tomando aquele sol escaldante de onze da manhã. Meu rosto já devia estar parecendo um pimentão, mesmo com o protetor solar fator sessenta que havia me lambuzado. O ruim de ter pele extremamente branca como a minha era isso: qualquer coisinha, qualquer coisinha mesmo e eu ficava todo vermelho.

Almoçamos por lá. Torricamos no sol à tarde, dei alguns mergulhos, umas duas voltas na piscina para dizer que eu havia efetivamente nadado, e fomos embora.

Não antes, claro, da Maria tocar naquele assunto de novo.

– Estava pensando que a gente podia pegar carona com o William... - ela disse, enrolando a mecha azul com os dedos da mão direita, assim, casualmente. Franzi a testa e ela continuou sem me encarar quando retomou o raciocínio. - Você sabe. A festa. A gente podia ir todo mundo junto.

Revirei os olhos com força e suspirei, tentando não parecer muito nervoso. Mas logicamente que ela percebeu e se enfureceu.

– Não adianta fazer essa cara, Luiz. Nós vamos.

– Como você sabe que o William vai? - devolvi a pergunta, desviando a atenção de mim mesmo. - Ele nem é da nossa sala.

– Ele me disse, oras. Perguntou se a gente ia. Parece que a Natália convidou um bocado de gente.

Fiquei imaginando a que proporção aquela festa ia chegar, mas desisti no meio do caminho. Meus primos haviam comentado no carro numa das nossas voltas para casa (a deles fica no bairro seguinte ao meu) que boa parte da turma deles iria. E eles eram do segundo ano. Imagina do primeiro?

Não discuti com a Maria mais uma vez. Naquela altura do campeonato eu já estava dando o caso por vencido – para ela, não pra mim, infelizmente. Só tínhamos que saber como convencer sua mãe a deixá-la sair a noite para um sítio abarrotado de adolescentes e a quilômetros de distância.

Acabei falando da festa para a minha própria mãe no dia seguinte, durante uma tarde monótona em frente à TV. Estávamos assistindo a uma maratona de filmes que ela gostava, comendo pipoca, tendo os pés amassados pela nossa gata, a Catarina. Ela era uma gata persa de quatro anos, manhosa e ciumenta. Minha tia Inês era dona da mãe dela e, na primeira cria, ela nos dera a Catarina de presente. Mamãe não era muito fã da gata no começo, mas ninguém resiste ao carinho!

– Uma menina da minha sala vai dar uma festa nesse fim de semana... - comentei entre um filme e outro, enquanto ela preparava mais pipoca e a Catarina se espreguiçava. Da cozinha, ela gritou em resposta.

– Festa? De aniversário?

– Não. Só uma festa.

Ela não respondeu até aparecer com um balde de pipocas amanteigadas gigantesco, descalça, calças de moletom folgadas e o cabelo preso descuidadamente no topo da cabeça. Às vezes me confundo em saber quem é mais adolescente ali, eu ou ela.

– Hm. - ela mastigou uma mão de pipoca, se sentando ao meu lado no sofá. Nossas roupas eram iguais, diga-se de passagem. - E você vai?

Dei de ombros.

– Não sei. Eu vou?

– Está me pedindo permissão? - ela riu e me encarou, falando de boca cheia. Revirei os olhos forçadamente. - Onde vai ser? Com quem você vai? Que horas vai começar e que horas pretende voltar pra casa? E como...

– Tá bom, tá bom! Já tá fazendo perguntas demais, mãe!

Ela pegou o controle e aumentou o som da TV um pouquinho e me passou o balde de pipoca. O filme estava começando, então ela perdeu o interesse em mim. Cinco minutos depois e sua voz me assustou.

– A Maria vai? Por que vocês vão ter que conversar com a mãe dela.

– Pois é... - suspirei. - Nem sei como vamos chegar lá.

– Táxi. - minha mãe subiu os ombros. Lembrei que era um sítio, na saída da cidade. - Tem dinheiro no pote da cozinha, pode usar se quiser.

Fiquei imóvel, com uma pipoca no ar, a boca aberta, olhando de lado pra minha mãe. Depois de uns três minutos ela se virou pra mim como se eu fosse o esquisito da família.

– Quer que eu volte a fazer as perguntas? - balancei em negativa e ela deu de ombros, se concentrando na TV novamente. Uma pausa. A mão esquerda dela veio ao meu cabelo, depois passou pelo meu rosto e apertou minha bochecha. Nós rimos enquanto eu a espantava, assim, só para não perder o costume. - Depois quero todos os detalhes.

Aprendendo a Gostar de Garotos {Aprendendo I}Onde histórias criam vida. Descubra agora