Março V

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Minha mãe trabalha pra caramba. Assim, ela não é nenhuma neurótica com a profissão nem nada, mas dá muito duro pra sustentar a gente do jeito que sustenta. Não moramos num lixão, o bairro é bem respeitado até. Não é o bairro do tio Ronaldo, que só tem mansão a cada esquina, mas é tranquilo e aconchegante. Não tem muita violência (pelo menos não visivelmente) e é abastecido por todos os serviços essenciais pra gente viver. Sabe, sacolão, supermercado grande, clubes de lazer, escolas, cursinhos, comércio, praças, essas coisas. Eu não preciso me deslocar mais que quatro quadras pra fazer tudo o que preciso num dia comum – que, na verdade, é quase nada.

Só saio de casa quando realmente preciso, quando tem alguma coisa vital faltando. Papel higiênico, por exemplo. Comida eu peço pelo telefone mesmo, apesar de que ela sempre deixa uma marmitinha feita pelo menos pros três primeiros dias da semana na geladeira. Mamãe adora selecionar os restos da comida do almoço de domingo na casa da vovó, é quase como sua segunda especialidade.

Ela é publicitária, essa é sua primeira especialidade, e trabalha num escritório renomado da cidade. Quando mais novo, me lembro que ela costumava trazer muito trabalho pra casa pra dar conta de fazer tudo e ainda permanecer comigo por algumas horas do dia – ou enquanto eu permanecesse acordado. Não era fácil, ainda não é, mesmo porque eu durmo cedo, por incrível que pareça.

Ela parou de fazer isso, porém, principalmente depois que eu caí da bancada da cozinha enquanto ela estava com um cliente ao telefone e soterrada de papéis. Não me peça detalhes, não faço ideia do motivo de estar engatinhando na bancada. Depois que o médico disse que eu havia mesmo fraturado o braço, ela nunca mais levou nenhuma outra dor de cabeça pra dentro do nosso apartamento – só as que eu provocava mesmo.

"Dona Rose é a melhor mãe do mundo, você não tem do que reclamar", era o que a Maria dizia. Acho que ela sempre esteve certa, apesar de eu saber que seu julgamento sempre foi influenciado pelo fato de que a mãe dela era, bom, nada legal.

No nosso prédio nós temos três vizinhos por andar. Nenhum deles fica em casa durante o dia, mas a nossa vizinha de porta tem uma empregada que passa as tardes entre limpar a sala de porta aberta, conversar com o namorado pelo telefone e dançar funk.

Sério.

Agora que já estou "mais crescidinho", nas palavras da mãe-Dona Rosângela, eu fico sozinho depois que chego do colégio até ela voltar do trabalho. Entretanto, até meus onze anos, eu passava as tardes ou na casa da minha avó, ou sob os cuidados da tal empregada, a Cidinha.

Vovó não mora num lugar fácil pra minha mãe me pegar depois que sai do trabalho, então desistimos da ideia e ela me consentiu ficar em casa se prometesse não dar nenhuma festa de arromba enquanto ela estivesse fora. Ou trouxesse ninguém pra dentro do meu quarto, pra cima da minha cama, que ela não soubesse.

- Muito menos pra fazer companhia pra Maria Eduarda, está bem? - ela havia se certificado certa vez. Eu rolei os olhos.

Não era como se isso fosse acontecer.

Muito menos agora.



Minha companheira de todas as horas é a Catarina, essa gata felpuda e inteligente que eu tenho o prazer de ter.

Juro. Eu costumo dizer que animais são sensitivos porque é a mais pura verdade! Eu percebo isso todos os dias! É só olhar pro jeito como ela se comporta quando vê que eu tô chateado ou triste: ela fica no meu colo, se esfregando em mim, passando o rosto no meu, às vezes lambendo meus cotovelos no maior amor do mundo. Quando sabe que eu estou nervoso, ela fica bem longe. Quando estou jogando, ela fica me espiando entre as almofadas e sabe exatamente a hora de ou chegar perto, ou correr corredor afora porque sabe que vou gritar.

Ela me escuta.

Escuta meus monólogos idiotas, só para o caso de alguém pensar que eu estou falando sozinho. Eu sempre falo com a Catarina, oras, é o que eu digo a mim mesmo também.

Contei a ela sobre a festa, sobre a Maria e sobre ela não ter ido à aula. Falei inclusive que me escondi durante o intervalo de almoço inteiro, só'para o caso do William resolver me procurar. Não estava no modo "social", definitivamente.

Catarina miou quando terminei o relato diário com um suspiro audível. Ela se esgueirou por debaixo do meu braço e se acomodou sobre as minhas pernas... Passei os dedos por detrás das orelhinhas dela, fiz um cafuné e sorri. Ela olhou pra mim com os olhos azuis meio vesgos e eu quase deixei a lágrima escorrer.

O que tava acontecendo comigo?

Aprendendo a Gostar de Garotos {Aprendendo I}Onde histórias criam vida. Descubra agora