Fevereiro V

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– Falei com o William, ele disse que chegou de viagem hoje. - A Maria estava ao telefone a meia hora, falando sobre os três dias que havíamos ficado sem nos comunicar direito porque a rede de internet da casa dela não estava funcionando. Meu personagem no GTA tinha acabado de escapar da polícia. - E disse que vai pegar carona com o irmão mais velho dele amanhã. Parece que ele vai para um lugar perto de onde é o sítio da Natália.

Respirei fundo. Meia hora para ela chegar aonde queria!

– Aham... - monologuei, manobrando o carro que acabara de roubar no videogame.

– Luiz, você tá jogando enquanto fala comigo, não tá?? - ela gritou do outro lado da linha e o celular caiu do meu ombro. Tive que pausar pra poder responder. Ela bufou alto, irritada. - Você já falou com a sua mãe?!

– Você já falou com a sua?? - devolvi. Ela demorou alguns segundos para responder, em voz baixíssima:

– Você acha que dá pra passar aqui em casa? Assim, só pra falar que você vai me pegar e tal. Que nós vamos juntos.

– Você disse exatamente o quê a ela?

– Que íamos a uma festa da escola. Que eu ficaria o tempo todo com você. - ela engoliu seco. - E que voltaríamos antes da uma da manhã...

Bom, como eu não estava planejando ficar muito tempo mesmo, por mim tudo bem. Aliás, não estava planejando nem ir, então quanto menos tempo ficássemos fora, melhor. Mas mesmo assim eu sabia que a uma da manhã a festa deveria estar começando, e não terminando. Expirei o ar com força, sabendo que seríamos alvo de perguntas indesejadas durante os próximos quinze dias – ou até a próxima festa, vai saber.

Concordei, porém, em passar na casa dela antes de irmos. Na verdade, combinamos que eu iria para o apartamento deles de tardinha, lá pras cinco da tarde. Jantaríamos lá pras sete e o William nos encontraria num shopping, que era caminho, às oito. Assim ninguém reclamaria de nada. Os pais dela me conheciam e, a julgar pelas circunstâncias, eles confiavam a vida da filha deles na minha mão. O que, eu acho, era um erro absurdo, mas fazer o quê?

Enquanto o longo dia terminava e a sexta da festa chegava, fiquei me questionando pequenos detalhes que até então haviam me passado despercebido. Como a Maria havia falado com o William? Será que eles já haviam trocado números de celular? Porque eu não tinha. Quero dizer, ele havia me adicionado no Facebook e tal, mas nós não conversamos fora da escola hora nenhuma. Certo, ele havia me marcado em umas três publicações, mas como eu não respondi, acho que desistiu. Talvez ele tivesse feito o mesmo com a Maria, sei lá. E para matar minha curiosidade – ou pra aguçá-la ainda mais – fui checar o Facebook dos dois e havia, sim, algumas publicações e menções de um pro outro, mas não tantas.

Mas umas duas publicações com coisas do tipo “aquelo que te mostrei ontem”, e “lembra do que te falei?” me chamaram a atenção. Eram de assuntos que eu nem me lembrava deles terem tocado perto de mim.

Ou seja, eles estavam se falando fora da escola. Muito possivelmente fora da internet. Quase certamente por telefone.

Não sei que tipo de reação eu deveria ter, mas eu senti um bocado delas. A primeira foi um choque estranho, como se tivesse parado o mundo e ele tivesse estacionado bem sobre os meus ombros. Depois, raiva. Borbulhante, quente. E depois minha mãe me chamou para o almoço, o que me fez perceber que era meu estômago que provavelmente estava roncando e se remexendo.

Tentei limpar aquilo tudo da cabeça antes de ir para a casa da Maria. Tentei ser gentil, mas não gentil demais, com os pais dela e respondi todas as perguntas finalizando com um “obrigado” educado. “Como vai sua mãe?”, “Vai muito bem, obrigado”. “E sua avó?”, “Também está ótima, obrigado”. “Como estão indo na escola? O ensino médio não é fácil!”, “Ah, estamos nos adaptando, mas até então está tudo tranquilo, obrigado”. Assim mesmo, bem vago.

Quando ficamos finalmente sozinhos no quarto dela, a Maria estava uma pilha de nervos. Andava de lá pra cá com um batom na mão, um pedaço de papel higiênico na outra e tentava calçar as botas que havia separado, tudo ao mesmo tempo. Eu suspirei e desabei sobre sua cama, com um bichinho de pelúcia na barriga – era uma alpaca, uma espécie de lhama que a Maria odiava que chamássemos de lhama. Pra mim sempre seria uma lhama (apesar de eu saber, pelas incontáveis vezes em que ela havia me batido no processo, que era uma alpaca).

Ela estava falando algo, mas eu não escutei realmente. Só depois de uma meia hora ininterrupta, ela se sentou ao meu lado na cama e calçou as botas de verdade. Ela estava de calça jeans skinny, blusa de manga comprida que parecia ter sido feita com os pelos da minha gata, e suas mechas eram da cor de ferrugem, quase como a fivela do sapato dela. Tudo combinando. Ela estava bonita, talvez até bonita demais. A Maria não era uma garota que se preocupava com as aparências. Ela bonita por ser só, você sabe, ela mesma.

– Pronto. Podemos ir? Já está na hora? - ela checou o relógio pela milésima vez e ainda estávamos uns vinte minutos adiantados, mas ela teve a ideia de irmos e ficarmos perambulando no shopping por um tempinho, esperando a carona chegar. - Vai que eles resolvem passar lá mais cedo, aí a gente já vai estar lá. Facilita, né?

Eu estava sendo uma pessoa não muito agradável, admito. Não havia dito uma palavra a ela desde que pisara na sua casa e não disse no caminho ao shopping tampouco. Ela falou sobre todos os assuntos do mundo sozinha, para as vitrines, para o espelho do corredor... O jeito como ela ficava se olhando estava me irritando e todas as perguntas que ela fazia, fazia para ela mesma responder.

Até que, aparentemente, ela se lembrou da minha existência e se dirigiu a mim:

– Você acha que essa blusa está muito... você sabe, chamativa? Principalmente considerando que estamos no verão e não está tão frio assim para usar pele falsa. E ela é meio branca, meio bege. Contrasta demais com meu cabelo? - ela foi acoplando uma pergunta atrás da outra e eu revirei os olhos. Ela tomou o gesto como se fosse um tiro no peito. - Ah, não! Você deveria ter me dito em casa! Eu poderia ter trocado de roupa! Agora como vou fazer? Não posso comprar uma aqui, agora, posso? Será que tem algo que custe menos de vinte reais aqui? Porque é o que tenho, você sabe, fora o dinheiro do táxi da volta...

E lá estava ela monologando novamente, me excluindo. Antes que eu pudesse fazer menção de interrompê-la, seu celular tocou. O som era a abertura do seriado que ela tanto gostava e, sem atendê-lo, ela o enfiou no bolso detrás do jeans novamente.

– É o Will. Ele deve ter chegado. Vamos?

Aprendendo a Gostar de Garotos {Aprendendo I}Onde histórias criam vida. Descubra agora