Whit

20 1 0
                                    

Eu nunca havia tido uma alucinação, mas, ao ver Wisty em chamas, achei que estava tendo uma provocada por estresse.
Porque, vamos combinar, acho que até pessoas bem descansadas, conscientes e livres de culpa não pensariam: “Ah, olha só, minha irmã caçula acabou de se transformar em uma tocha humana”. Acho que tenho razão, né?
Mas, logo em seguida, com o calor e a fumaça e as cortinas da nossa sala de estar pegando fogo, percebi que aquilo estava acontecendo de verdade.
Depois, pensei que os brutamontes da Nova Ordem tinham colocado fogo nela. Acho que foi assim que consegui me livrar deles. E juro que teria acabado com aqueles idiotas se não tivesse saído correndo para apagar o fogo.
Então, o caos total se apoderou da nossa casa.
Nunca tinha visto um furacão, mas foi exatamente o que pensei que estivesse acontecendo. As janelas explodiram de repente e o vento invadiu a casa com a força de um rio, arremessando tudo: vidro quebrado, abajures e luminárias, mesinhas de canto...
Não conseguia ouvir nada além daquele barulhão. Chovia tão forte que a própria água da chuva (isso sem contar os pedaços de objetos que ela carregava) nos machucava como uma nuvem de abelhas saindo de um aspirador de pó invertido.
é claro que eu também não conseguia ver nada. Abrir os olhos teria sido como pedir para ficar cego para sempre com tantas farpas de madeira, cacos de vidro e pedaços de gesso voando por ali.
Por isso, eu ter conseguido me livrar dos capangas não me ajudou muito. Estávamos todos tentando nos segurar no chão, nas paredes, em qualquer coisa mais sólida para não sermos sugados janela afora e voarmos para encontrar a Morte.
Tentei gritar para a Wisty, mas não conseguia nem ouvir a minha própria voz.
E então, em um segundo , tudo ficou quieto e silencioso de novo.
Tirei o braço da frente do rosto... e vi uma cena que não vou esquecer pelo resto da minha vida.
Um homem alto, careca e imponente estava de pé ali, bem no meio da nossa sala de estar demolida. Imagina, isso nem dá medo, né? Pois imagina direito.
Esse cara é ninguém menos que a personificação do mal.
— Olá, família Allgood — ele disse em um tom baixo, porém poderoso, que me fez prestar atenção em cada palavra. — Eu sou O Único que é O Único. Talvez vocês já tenham ouvido falar de mim.
Meu pai falou mais alto.
— Nós sabemos muito bem quem você é. Mas não temos medo de você e não vamos nos curvar às suas regras horríveis.
— Eu não esperava que você se curvasse à regra alguma, Benjamin. Nem você, Eliza — ele disse à minha mãe. — Aspirantes a subversivos como vocês sempre colocam a liberdade em primeiro lugar. Mas o fato de vocês aceitarem essa nova realidade ou não na verdade não faz a menor diferença. Estou aqui para ver os jovens. Isso é uma demonstração de comando, vocês entendem. Eu comando e eles obedecem.
Então, o careca olhou para a minha irmãzinha e para mim, e nos deu um sorriso simpático, carinhoso até.
— Vou facilitar para vocês dois. Tudo o que têm que fazer é renunciar a sua existência anterior, como suas liberdades, seu modo de vida e, principalmente, seus pais, e, então, serão poupados. Vocês não sofrerão mal nenhum se obedecerem às regras. Não tocaremos em um único fio de cabelo de vocês. Eu garanto. Renunciem a sua vida anterior e a seus pais. Só isso. Simples, fácil e indolor.
— Nem pensar! — berrei para o cara.
— Isso nunca vai acontecer. Nunca! — Wisty disse. — Renunciamos a você, Sua Carequidade, Sua Terriveldade!
Ele deu uma risadinha ao ouvir aquilo, o que me pegou totalmente desprevenido.
— Whitford Allgood — O Único disse e olhou fundo nos meus olhos. Uma coisa estranha aconteceu bem naquela hora: eu não conseguia me mexer, nem falar , só escutar. Foi a coisa mais assustadora que havia acontecido naquela noite até então.
—Você é um menino bonito, tenho que reconhecer, Whitford. Alto e loiro, magro, porém musculoso, com proporções perfeitas. Eu sei que você era um menino muito bom até recentemente, até o desaparecimento infeliz da sua namorada e alma gêmea, Célia.
Raiva e frustração começaram a ferver dentro de mim. O que ele sabia sobre a Célia? Deu uma risadinha ao falar sobre o desaparecimento dela. Ele sabia de alguma coisa. Ele estava tirando uma com a minha cara.
— A questão é... — ele continuou. — Você consegue ser bom de novo? Você é capaz de aprender a obedecer às regras?
Ele jogou as mãos para o alto.
— Você não sabe? ! — gritou enquanto minha boca paralisada me impedia de berrar a série de palavrões que eu tentava lhe dizer.
Ele se virou para Wisty.
—Wisteria Allgood, eu também sei tudo sobre você. Desobediente, obstinada, matando aula, mais de duas semanas de detenção disciplinar para cumprir na sua escola. A questão é: você é capaz de ser uma boa pessoa um dia? Será que é capaz de aprender a obedecer?
Ele encarou Wisty em silêncio, só esperando pela resposta.
E, com uma atitude que é a cara da Wisty, ela fez uma reverência bem bonitinha para ele e proclamou:
— É claro, meu senhor, cada desejo que tiverdes será uma ordem para mim.
De repente, Wisty interrompeu seu discurso sarcástico e percebi que ele também tinha paralisado minha irmã. Em seguida, O Único que é O Único se virou para seus guardas.
— Leve-os daqui! Eles nunca mais verão os pais. E vocês, Ben e Eliza, só verão seus filhos tão especiais no dia em que todos vocês morrerem.
Wisty e eu estávamos em um enorme furgão preto, sem janelas. Meu coração batia como o de um coelho epilético e eu não conseguia ver quase nada por causa da adrenalina. Precisei de cada migalha de sanidade que ainda tinha para não me jogar contra a parede do furgão. Eu me imaginei partindo a cabeça contra o metal, abrindo as portas de trás, ajudando Wisty a sair para fugirmos pela noite...
Mas nada disso aconteceu.
Até onde sabia, eu não era bruxo nem super-herói. Eu era apenas um moleque do Ensino Médio, que tinha sido sequestrado na própria casa. Olhei para Wisty, mas mal podia enxergar seu perfil na escuridão. Seu cabelo molhado estava pingando no meu braço, e ela tremia muito. Talvez de frio ou de choque, talvez de frio e de choque e de descrença total.
Coloquei os braços ao redor dos ombros ossudos dela, o que foi difícil porque eu estava algemado. Tive que enfiar a cabeça dela entre os meus braços. Eu não conseguia me lembrar da última vez que a tinha abraçado, a não ser quando tinha vontade de sacudi-la porque ela havia mexido nas minhas coisas ou quando a peguei me espionando... com a Célia.
Eu não podia pensar nela naquele momento ou perderia a cabeça de vez.
— Tudo bem? — perguntei . Wisty não parecia estar nem um pouco carbonizada. Não senti nenhum cheiro de linguiça queimada nem nada do tipo.
—É claro que não está tudo bem —ela disse, deixando o “seu idiota”de sempre de fora do final da frase. —Eles devem ter jogado alguma coisa inflamável em mim. Mas não estou queimada.
— Eu não os vi borrifarem nada em você — respondi. — Foi tipo bum! Fogo! — Consegui dar um sorrisinho. — Claro que eu sempre soube que seu cabelo era perigoso. — Wisty é uma cabeça de cenoura de verdade , com um cabelo ruivo e ondulado que ela odeia, mas que eu acho bem legal.
Wisty ainda estava assustada demais para entender a piadinha sobre o cabelo dela.
— Whit, o que está acontecendo? O que aquela múmia do Byron Swain tem a ver com isso? O que está acontecendo conosco? E com a mamãe e o papai?
—Tem que ser algum erro medonho. A mamãe e o papai não seriam capazes de fazer mal nem a uma mosca. —Eu me lembrei dos meus pais, presos e indefesos, e tive que engolir o ódio de novo.
O furgão parou de repente . Fiquei tenso, olhando com atenção para as portas, pronto para pular para cima de alguém. Mesmo algemado. Mesmo que fosse para encarar um soldado gigante e entupido de esteroides.
Eu não ia deixar ninguém machucar a minha irmã. E não ia dar uma de bonzinho e obedecer às regras idiotas deles.
Foi como se tivéssemos acordado e, de repente, estivéssemos vivendo em um Estado totalitário.
A primeira coisa que vi voando ao vento sobre nós foram dezenas e dezenas de bandeiras com as letras N.O., pretas e enormes.
N.O. Quase “Não”. Era bem apropriado e até poético. N.O., não.
Wisty e eu estávamos do lado de fora de um prédio imenso e sem janelas, cercado por um alambrado com concertina de arame farpado na parte de cima. Letras gigantes, esculpidas em uma pedra que ficava acima do arco de aço da entrada, nos diziam que estávamos no “REFORMATÓRIO DA NOVA ORDEM”.
rangido e percebi que bater em todo mundo não ia funcionar muito bem. Mais dez guardas, e esses usavam uniformes pretos, saíram de lá, se juntaram aos dois motoristas e formaram um semicírculo na traseira do furgão.
— Tudo bem . Agora, fiquem de olho neles. — Ouvi um deles dizer. — Vocês sabem, eles são...
— É, sabemos — disse outra voz rabugenta, de um dos motoristas. -Tenho as queimaduras aqui para provar que sei direitinho quem são.
Eu nem tentei lutar quando aqueles soldados sem cérebro nos empurraram para frente e nos arrastaram pelo portão alto de arame farpado.
Eu sou bem grande, 1,85 metro de altura, 86 quilos, mas aqueles caras agiam como se eu fosse um saquinho de pipoca. Wisty e eu tentamos prender os pés no chão, mas eles continuavam nos empurrando e nos fazendo perder o equilíbrio.
— Nós conseguimos andar! — Wisty berrou. — Ainda estamos conscientes!
— Podemos mudar isso rapidinho — disse um dos guardas monstruosos.
Eu bem que tentei dizer:
— Olhem, escutem aqui, vocês pegaram as pessoas erra...
O guarda ao meu lado levantou o cassetete e eu calei a boca no meio da frase. Eles nos empurraram enquanto subíamos degraus de concreto, passávamos por portas pesadas de aço, até chegarmos em uma sala grande e bem iluminada. Parecia uma prisão, com um guarda do tamanho de um guarda-roupa atrás de uma janela de vidro grosso, um portão trancado e outro guarda com um cassetete pronto para ser usado.
Ouvi um zumbido alto e o portão se abriu.
— Vocês não se sentem meio idiotas? — eu disse. — Tipo, um monte de caras gigantes só para duas crianças... É meio constrangedor. Vocês não prefeririam... Ai! — Um guarda me deu um cutucão bem forte na costela com o cassetete de madeira.
— Comece a pensar no seu interrogatório de logo mais — o guarda disse. — É falar ou morrer. A escolha é de vocês, fedelhos.

1801

bruxos e bruxas Onde histórias criam vida. Descubra agora