Capítulo 2

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Não sei quanto tempo estou aqui no banheiro me escondendo de mim mesma.

Pierre, a cada dois minutos, chama pelo meu nome para saber se estou bem. Uma forma de checar se eu não desmaiei ou dormi ou fiz uma besteira maior. Ele é um cara bom. O que me faz perceber que nem sempre as pessoas boas são escolhidas como primeira opção. Digo isso justamente por mim. Eu escolhi Michael, mesmo sabendo, lá no meu íntimo, que ele não prestava. Mas eu estava perdidamente apaixonada, ele despertou a mulher em mim e, bem, eu queria que meu amor o curasse.

Me casei aos dezessete anos, era só uma criança, ele tinha vinte e nove, já era um homem feito. Um homem que me cultuava, venerava, amava além do limite do racional. Viu na magricela de cabelo laranja — a Cenourinha, como meus colegas me chamavam para zombar de mim, uma mulher atraente.

Era como uma vingança.

Tê-lo só para mim, enquanto todas as outras meninas disputavam a tapa algum outro garoto medíocre, era mostrar para elas que eu havia vencido. Michael era meu troféu e era maravilhoso tudo o que ele me fazia sentir e tudo o que eu conseguia o fazer sentir, todo o prazer que eu aprendi a proporcionar.

Eu não sei mais o que é sentir algo em meu corpo. Um contato, um toque, um beijo. Faz dez anos que eu o deixei e uns cinco que eu não sei o que é sexo. Homens me causam repulsa e mulheres não fazem meu tipo. Eu tentei, então posso dizer com propriedade.

Lá pelas tantas eu decidi que eu mesma me bastava e poderia ser feliz somente com minha presença, canalizando toda a minha energia na profissão que ajudou a me salvar e que eu tanto amo.

Mas hoje eu preciso de mais. Preciso sentir. Eu preciso me lembrar de que estou viva.

— Nora? Tudo bem por aí? — Pierre bate novamente na porta. Eu seco o rosto com as mãos e limpo o nariz no antebraço, enquanto fungo.

— Estou bem. Eu já vou sair. Que horas são?

— 5h30. Desculpe incomodar, sei que você ainda tem meia hora no banheiro. Só estou um pouco preocupado.

— Obrigada por respeitar os horários. Você é um ótimo inquilino. O melhor! — falo e levanto, lavando o rosto na pia e secando na primeira toalha que encontro. Abro a porta e o encaro, ele está bem ali, ocupando quase a porta toda no alto dos seus 1,90 m.

— Oi. Você está bem?

— Não. Mas sei que logo passa.

— Se machucou?

— Sim. E muito. Não foi hoje, mas vai durar pra sempre. O mesmo e eterno machucado que nunca cicatriza.

— Entendo. — diz de forma verdadeira. Eu sei que ele entende, por mais subjetiva que eu tenha sido.-— Posso ajudar com alguma coisa?

— Olha, eu não quero falar sobre isso. Eu, sinceramente, já cansei de buscar ajuda psicológica, de conversar com profissionais ou não e, quer saber? Só estou cansada. Não quero mais dividir meus problemas com ninguém. Sou a primeira a recomendar esse auxilio às vitimas que eu resgato e apoio, mas para mim já deu. A única coisa que poderia me ajudar seria ter amnésia ou voltar ao passado e refazer tudo.

— Você não precisa me contar absolutamente nada. Nora, você sabe que eu sou voluntário na Casa de Passagem da França, que lá nós ajudamos refugiados, principalmente meninas e mulheres, de todos os cantos. Sabe também que morei por anos quando criança na Casa de Passagem do Brasil e que lá eu conheci Isabela e sua vida roubada. Eu já ouvi diversas histórias, das mais variadas e tristes e eu nunca pedi que nenhuma pessoa me contasse nada. Eu só me disponibilizava para auxiliar e as pessoas contavam ao natural. Elas tinham essa necessidade de desabafar, de aliviar o peito das angústias. E eu ouvi cada uma delas, em silêncio, absorvendo as palavras. Elas me agradeciam por ouvir. Às vezes a gente só precisa de alguém que pare tudo e nos ouça. Sem julgamentos. Sem conselhos. De alguém que silencie seu mundo particular e nos dê atenção.

Sentidos {DEGUSTAÇÃO}Onde histórias criam vida. Descubra agora