Capítulo 7

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No caminho, andamos a uma distância boa um do outro, ela não gosta de muita aproximação e eu respeito isso. O assunto entre nós flui com facilidade e sem perceber estou dando um autografo! Ah essa moça vai precisar me destratar muito, pois se continuar assim: misteriosa e adorável em proporções exatamente iguais, tirando o fato de ser linda como uma edição capa dura de páginas douradas, eu me renderia e logo estaria suspirando e a colocando em meus poemas como musa inspiradora. O que será que ela acharia se descobrisse que havia se tornado a inspiração dos meus dramas poéticos? A estrela que guiaria minhas mãos pelas folhas pólen do meu caderno de poesias taciturnas? Ah se ela soubesse o que se vai a minha mente agora! Me acharia um tolo, completo e falido. Riria de mim e logo me jogaria para o hall dos estúpidos. Eu seria só uma página, quando ela já tinha se tornado uma enciclopédia inteira!

Eu preciso ir embora, mas quem disse que quero? Porém sei que deixei com ela algo meu, mesmo que só meu nome, quando que ela deixou-se inteira comigo sem saber e azar o dela, pois totalmente sem querer já é meu opúsculo preferido, que pretendo tornar limitado, de colecionador único. Por que, quem ousaria desejar algo que se é visível só para meus olhos?

Vou, enfim, sonhando acordado. Moro muito longe e não me arrependo de ter mentido sobre isso, foi válido, pois certamente nunca mais nos veríamos.

Por fora eu sou totalmente previsível e calado. Mas por dentro eu sou mar de verbos e sentenças que não divido com ninguém, visto que seria expor meu íntimo e isso é forte demais para compartilhar. Tirar eu de mim mesmo. Não se pode!

Quando chego, escrevo feito um condenado, sentindo cada expressão que me vem, quase não dou conta da intensidade delas. A moça sem nome povoa meu quarto e eu sou apenas um pescador dos termos que flutuam no ar, brilhantes como astros no céu escuro. Privilegiado.

Acordo na manhã seguinte antes mesmo de sequer ter bem dormido e passo o dia pensando em vê-la, mesmo que pela janela, mas não o faço porque sou feito de palavras e não de coragem.

Me sinto totalmente anestesiado, enquanto tento trabalhar, como que nem pertencendo ao meu corpo. Nesse exato instante eu finalmente entendo tudo o que os poetas de antigamente sentiam ao encontrarem suas musas. É algo que não se escolhe, mas, sim, se é escolhido. Nunca levei fé nesse lance de primeira vista, quer dizer, eu não estou amando nem nada, mas para que se entenda: a musa é para o poeta o mesmo que o pincel é para o pintor, o norte para o navegador, o sorriso para o fotógrafo. Vive-se muito bem sem, claro, porém quando se tem tudo fica melhor. Deixamos de vagar a esmo e nos focamos no rumo certo.

E quando me dou por mim meu horário finda. Me dirijo para o mesmo destino diário para aguardar o transporte rotineiro, louco para que chegue e eu possa pensar nela, a sós, pois ignoro todos os outros ao meu redor. Crio parágrafos aleatórios em meu caderno e pela primeira vez eu não apago nada, tudo fica e encaixa perfeitamente. As frases jorram como uma fonte e eu me sinto embriagado e rio sozinho sem me importar com o que podem estar pensando sobre mim. De repente ela surge bem ali do meu lado. Fico mudo instantaneamente, mas a cortesia foi imposta em mim pela educação dada por meus pais e a ofereço meu assento. Nessa simples troca de lugares, nossos mundos se tocam numa brevidade impactante e eu sinto seu perfume: café, madeira e um toque floral bastante sutil.

Eu ainda não sei seu nome, mas não me importo nem um pouco. Na verdade é perfeito assim, pois me dá a chance de vê-la novamente só para descobrir. E eu poderia aguardar muito por isso, a vida toda se fosse possível e se me desse a garantia de ter a presença dela em meus dias.

Ela não sabe, mas estou exultante por dentro, mesmo que não transpareça. Ela ouve meus assuntos e os aprecia, e o que eu falo é mera banalidade caseira: minha família. Ela se surpreende por eu gostar tanto dos pequenos; não tem filhos, porém seus olhos brilham quando eu menciono meus seis sobrinhos. Ela ri quando digo que temos planos de dominar a Terra. Ah, ela ia adorar visitar o pessoal lá de casa, ela riria a beça e eu estaria lá, expectador da primeira fileira.

Será que ela sabe que é linda? Porque posso jurar que nunca vi nenhuma outra mulher como ela! Mas não vou dizer isso, não por enquanto, ela me afastaria e eu não poderia arriscar.

Ela levanta e me agradece por ter feito companhia. Acha que só pratiquei uma boa ação por não deixá-la dormir, mal sabe que a boa ação veio dela só pelo fato de me deixar ficar por perto.

Em casa, minha mãe abre a portão quando chego. Dona Alice sempre me espera na porta e quando me vê, apressa os passos para abrir o cadeado.

Depois de me dar dois beijinhos nas bochechas, pergunta no caminho até dentro de casa:

— Como foi hoje filho, tudo bem? Não passou frio?

— Tudo bem, mãe. Normal. Não passei frio nem calor.

— Vem, tira a mochila e senta que vou servir sua janta.

Os diálogos são basicamente os mesmos toda a vez que chego, apenas com pequenas variações, dependendo do humor dela ou se estamos com visitas e essas coisas. Largo a mochila no sofá, passo no banheiro para lavar as mãos e depois sento à mesa que já está servida com um prato fumegante de carne de panela com arroz, feijão, purê de batata e salada verde. A mãe traz em seguida uma jarra de suco de laranja.

— Com fome?

— Mais ou menos. — Na verdade eu quero ir para meu quarto, não quero comer, mas não tem como escapar do escrutínio da minha mãe.

— Comeu há pouco tempo? Porque você sempre chega morto de fome e agora está aí revirando o prato!

— Só não estou com muita fome hoje, mas a comida está ótima como sempre, dona Alice. — Beijo a testa dela.

— Então coma. Eduardo esteve aqui mais cedo, passou bem rápido, mas disse que vai trazer os trigêmeos amanhã para brincarem com a Flor. Elisa ligou, vem no final de semana almoçar.

— Notícia boa! Estou com saudades dos pestinhas. — Sorrio, sincero.

— Ah eu sabia que você ia gostar! — Bate palmas, sorridente.

— Gostei muito! Estava pensando neles hoje. Mas, cadê o pai? — pergunto, olhando para os lados.

— Ta consertando o a pia do tanque, deu vazamento, fez uma meleca que só vendo!

— E o Everton? Ta tudo tão silencioso hoje por aqui.

— Saiu pra jantar com a Liz e a Flor. Daqui a um mês vai ser o desfile da marca da Liz e eu não vejo a hora! Deve ser tão chique!

— Deve ser.

Como o restante do jantar sob o olhar da minha mãe que não permitiria que eu deixasse um grão de arroz no prato. A comida estava ótima e com o passar do tempo, acabei descobrindo que estava sim com muita fome, como em todos os dias.

Lavo meu prato e depois vou ver o pai, que estava vindo da área de serviço dos fundos com a caixa de ferramentas. Conversamos um pouco sobre futebol e a novela das nove e então digo que vou para meu quarto.

Enfim, no meu recanto, posso discorrer sobre os pensamentos que deixei vagarem pela mente durante aquele dia. Escrevo sem me importar se rima ou se faz sentido, mas me sinto bem com o que crio e deixo para ler e analisar no dia seguinte.

O que eu nem sonhava era que veria Nora uma porção de vezes naquela semana e na seguinte. Que viraríamos amigos, que eu cederia meu lugar pra ela no ônibus todas às vezes e veria seus sorrisos e caretas das mais diversas entre nossos assuntos.

Sim ela me disse seu nome espontaneamente quebrando meu plano de nunca descobrir para sempre ter uma oportunidade nova, mas não me desapontei, pelo contrário, me deu novo ânimo, porque o nome era perfeito para ela: pequeno, sonoro e único e virou título dos meus textos e reflexões. Numa das noites em que a insônia me visitou, batizei uma estrela de Nora só para ter um vislumbre do que seria vê-la ao anoitecer.

É pura melancolia esse meu mundo de amor platônico, mas é o combustível do sonhador, eu gosto. Estranho seria se eu fosse correspondido, mas isso é outra história.

Teve certo dia que me propus a acompanha-la em um caso e a expressão dela na hora foi indecifrável. Eu falava sério, foi impulsivo, porem honesto, eu queria ter mais chances de estar com ela. Nora não respondeu mais nada e eu deixei por assim. Estar com ela em silêncio era também maravilhoso e significava que ela não havia descartado a proposta.

No dia seguinte, contando os minutos para encontra-la, acabo não chegando ao meu destino.

Sentidos {DEGUSTAÇÃO}Onde histórias criam vida. Descubra agora