Capítulo XI: O Mediador da Cidade Sem Crianças

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Jantamos a única refeição de Diana, uma comida feita do preparo que vi no mercado para as pessoas comuns. Uma pasta marrom com propriedades nutritivas duvidosas, aparência nada agradável e sabor forte, mas que não consigo comparar com nada que já experimentei.

Agora estamos caladas, apenas é audível o som do meu garfo no fundo da panela. Me pergunto se essa será minha nova vida e não consigo parar de pensar quanto tempo isso irá durar, se não é outra extensão do intrincado projeto que é a minha vida, tudo minuciosamente calculado por alguns engravatados da Eletrichildren. Não sei até onde podem manipular o que acontece à minha volta e como irei agir ao extresse, só sei que se pudessem prevê cada uma de minhas ações não teria por que testá-las e se eles não tem esse controle absoluto, então é nesse ponto que se encontra as minhas chances de fugir.

- De quem é o berço? - pergunto curiosa, não há criança nenhuma na casa e aparentemente ele não é usado há algum tempo.

- Minha filha.

- E onde está ela?

- Foi levada. - Diana parece relutante em responder, mas o faz mesmo assim.

- Como e por quem?

- Eu não quero falar sobre isso...

Respeito sua vontade. Penso em todas as crianças na instalação da Eletrichildren, nas lojas de Ecos e em todos que estão pelas ruas ou casas de seus donos. Não podem ser apenas órfãos e crianças abandonadas pelos pais, são tantos e dentre eles a maioria deve ter sido tirados à força de suas famílias, deixando crianças traumatizadas e pais desesperados.

Sem energia elétrica e qualquer um dos entretenimentos provenientes disso vamos dormir cedo. Diana já sabia que eu viria então tem um espaço ao lado da cama que está vazio, desocupado às pressas, um espaço apenas largo o suficiente para colocar o fino colchão dobrado em dois, o que o deixa mais macio. Meu corpo agradece, após passar a noite anterior sem dormir e ao relento.

A diferença entre o chão em que durmo e a minha cama na casa de Price é imensurável, mas ainda sim é infinitamente melhor que o chão da cela espelhada ou a cama na cela de vidro com o medo da porta negra e a sensação de estar presa e sempre vigiada.

Nada pode comprar a liberdade de alguém, é aquilo que temos de maior valor.

Acordo ainda durante a madrugada, a chuva está forte e parece que irá cair a noite toda. Item número um que tenho que me acostumar, o som das gotas da chuva batendo no teto metálico do contêiner.

Sem sono para voltar a dormir e com sede, desisto de tentar e me levanto. Desvio de um ponto onde goteja em uma bacia quase cheia e vou até o filtro. Pego um gole da água já destilada de forma improvisada e tomo, após aplicados os métodos de tratamento, características como a turbidez e odor da água são corrigidos, mas ainda tem um sabor característico amargo que tem origem da contaminação e deve haver uma variação anormal no pH.

Eu finalmente sei a minha origem, mas agora isso parece não significar tanto quanto deveria, a realidade é que mesmo que eu tenha descoberto que existiram pessoas que se importavam comigo, isso não influencia a minha vida.

Volto para meu colchão e pego no sono torcendo para que minha vida aqui dure e que, embora precário, seja real.

Acordo no outro dia com o corpo dolorido, a boca e a garganta seca. Mesmo tendo chovido durante toda a noite o ar aqui é seco e parece desprovido de oxigênio. Me sento e vejo Diana ainda dormir.

Mesmo já tendo se passado horas do primeiro contato que tivemos ainda me impressiono com o quanto ela se parece comigo. Um queixo fino e curto, um rosto tão delicado que parece ter sido modelado em argila molhada por um experiente escultor, bochechas carnudas que indica que sua vida é precária, mas ao menos ela não passa fome e ela possui uma cicatriz que divide sua sobrancelha em duas, um dia isso foi moda entre os jovens.

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