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"Vida própria. Se você não tem, pergunte pra quem tem." Com apenas uma semana nesse novíssimo esquema de semi-escravidão que eu agora vivia (e tinha plena consciência), aquele havia se tornado meu mantra. Eu já estava devendo tantas horas de sono para mim mesmo que eu tinha certeza que levaria o resto da minha vida para pagar. Se antes o mais longe que eu conseguia andar em casa antes de dormir era no sofá, agora eu fazia um esforço sobre-humano para não dormir no tapete de entrada do apartamento (o tradicional "seja bem vindo" que ficava do lado de fora da porta).

A água do chuveiro caiu na minha cabeça e me devolveu um pouco de lucidez, eu lembrei que precisava checar os meus e-mails. Na verdade, eu nem lembrava se eu ainda tinha um e-mail e se alguém ainda se lembrava de me escrever.

Ainda enrolado na toalha, liguei meu computador e tentei não me concentrar nas barrinhas verdes que corriam enquanto meu XP iniciava. Eu tinha certeza que elas teriam o mesmo efeito que um relógio balançando diante dos meus olhos e eu acordaria babando em cima do teclado em poucas horas.

No meu gmail havia 59 mensagens não lidas, 43 de coisas que passaram pelo filtro de spam e que seriam deletadas logo em seguida. Havia um convite para o aniversário da minha sobrinha mais nova (na semana passada) e um pedido de adição de novo amigo pro orkut.com. Uau, alguém quer me conhecer. Levando em consideração que eu não conhecia ninguém novo que não trouxesse a logo da Águas do Brasil bordada no peito há séculos, achei aquilo o supra-sumo. Acessei a minha conta e verifiquei o perfil da pessoa. Nome: Suzanna Toscano. Cidade: Campos dos Goytacazes. Droga! Trabalho! Aceitei o pedido e saí do site. O meu hotmail disse que a minha conta já havia expirado por "falta de acesso por um período superior há 30 dias". Droga! Cogitei reativar a conta, mas decidi que estava cansado demais para aquilo agora.

Desliguei o computador e me arrastei para a cama, onde peguei no sono instantaneamente.

Na manhã seguinte a primeira coisa que eu fiz assim que o meu celular despertou foi olhar que dia da semana era. Quarta-feira. Ainda. Eu estava tão cansado quanto na hora que apaguei ontem, mas consegui sair da cama e me vestir. Tomei um copo de café e desci para pegar o ônibus. Havia desistido do carro quando quase – quase! – dormi ao volante três dias antes. Eu estava um caco.

Duas semanas depois soube que a Samara estivera na agência para falar comigo e estranhou eu não estar mais ali dentro. Assim que ela foi informada da minha atual situação, tentou me ligar, mas meu celular estava fora de área (eu estava em um lugar sem cobertura na Itoupava Central) e quando eu pude retornar a noite ela me deu um relatório rápido sobre o Rafael (ao qual eu ouvi em silêncio apenas falando uns "ahã" nas partes certas, não por não me preocupar com o meu filho, mas porque estava tentando entender o motivo que o pocket da Marta não era reconhecido pelo computador por mais que eu tentasse).

- Gustavo, você está dormindo direito? – Ela perguntou.

- Ahã.

- Gustavo, eu estou falando com você!

Voltei minha atenção para o telefone.

- Desculpe, estou com um probleminha aqui. O que houve?

Apesar de não poder ver, eu tinha certeza que ela estava com a mão sobre os olhos pensando algo como "eu não acredito".

- Você precisa de férias, Gustavo. – Ela disse. – É sério!

- Não posso tirar férias agora. – Eu respondi rápido. – Não há ninguém para ficar no meu lugar.

- Gustavo, o que houve com aquela resolução de ano novo? Achei que você tinha dito que tudo seria diferente. A única diferença que eu vejo é que você está cada vez mais atolado com esse trabalho.

O diabo não quer (só) a sua almaOnde histórias criam vida. Descubra agora