Existem duas situações em que você revê toda a sua vida: uma morte eminente ou o feriado de ano novo, o que era o meu caso. O último dia de 2010 estava acabando enquanto todos os meus parentes que haviam vindo até Navegantes estavam envolvidos no preparo da ceia. Eu passara quase todas as últimas viradas de ano ali e as duas últimas haviam sido acompanhadas da minha esposa. Aquele dia seria pra mim tão triste quanto havia sido o meu natal, que por acaso eu também havia passado ali, cercado pelos meus pais, tios e primos, mas o espaço para Samara e o meu filho estavam vazios. Felizmente, toda aquela sensação foi embora quando o dia 26 amanheceu e eu estava de volta ao trabalho. Naqueles dias que separavam as duas festas do final de ano eu me concentrei em qualquer coisa que me oferecesse um desvio de pensar em mim ou na minha vida como um náufrago agarraria uma bóia.
- Gustavo? – Minha mãe chegou perto de mim. – Está tudo bem?
Eu sorri. Talvez o mais falso sorriso que eu já dera em toda a minha vida.
- Você já telefonou para a sua mulher? – Ela insistiu.
- Ela não é mais minha mulher, mãe. – Olhei para o nada. Caramba, parecia que aquelas palavras vinham enroladas em arame farpado.
- Vocês já deram entrada no divórcio e você não me disse nada? – Ela pôs as mãos na cintura imitando estar brava.
- Não. – Eu disse. - Acho. Pelo menos ainda não fui chamado em advogado nenhum.
Minha mãe me envolveu no abraço mais maternal que ela tinha, aquele que me fazia sentir que nada no Mundo poderia me atingir. Eu me senti confortável pela primeira vez desde que aquele inferno tinha começado.
- Você ama a Samara, filho?
- Amo, mãe. Como eu nunca amei ninguém na minha vida inteira.
Eu podia sentir as mãos macias dela passeando por entre os meus cabelos. Num instante, eu voltei a ter quatro anos e estava deitado no colo dela. Pelo menos era como eu me sentia.
- Mais do que o seu trabalho?
Aquilo me fez olhar para ela como se ela tivesse dito algum palavrão.
- Claro que sim! – Eu disse entrando na defensiva. Será que ela também ia me acusar de trocar a minha família pela Águas?
- Então você vai deixar as coisas assim? Quer dizer, vai largar de mão e desistir?
Era o que eu estava fazendo, mas não era o que eu queria fazer.
- Não.
- Então, meu filho. – As mãos delas envolveram o meu rosto me obrigando a olhar para ela. – Lute pela sua mulher e pelo seu filho. Eles são a coisa mais importante que você tem e terá pelo resto da sua vida.
O beijo que ela me deu me encheu de conforto. Ela estava certa, eu estava sendo um idiota em deixar minha vida ir pelo ralo e não fazer nada para impedir. Eu podia conciliar minha vida com o meu trabalho. Todos conseguiam.
- Obrigado, mãe.
- Vá se trocar para o jantar. – Ela disse. – Depois nós todos vamos para a praia ver a queima dos fogos. Ande!
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O céu estrelado e sem nuvens estava claro com a luz da lua crescente. O mar parecia um espelho e era calado pelo burburinho de centenas pessoas rindo e brincando enquanto aguardavam os últimos minutos daquele ano acabar. Foguetes estouravam esporadicamente sobre o barulho das pessoas e tudo o que eu fiz foi me concentrar no mar.
Não que eu seja supersticioso, bem pelo contrário, mas o mar sempre havia sido algo digno de fascinação para mim. Ficamos ali nos olhando, eu em silêncio e ele em seu vai-e-vem de ondas. As imagens da última páscoa voltaram e eu podia me ver dentro da água abraçado com a Samara, dando gargalhadas enquanto brincávamos como se aquele fosse o último dia de nossas vidas. Eu estava feliz e sabia que ela também estava. Logo depois veio a notícia de que o Rafael estava a caminho...
O que mais um homem precisa para ser feliz?
Olhei para a tela do meu celular. Ainda faltavam 5 minutos para 2011. Eu não queria que aquele ano acabasse com pendências para mim. Disquei o número da Samara e aguardei a ligação ser completada.
- Alô? – Ela atendeu.
- Oi, Samara, é o Gustavo. – Eu disse, sorrindo.
- Oi, Gustavo. – Ela estava séria.
- Eu queria te desejar um feliz ano novo. – Eu disse, deixando as palavras saírem. Tantas coisas eu queria poder dizer, mas não sabia como. – Eu queria tanto que você estivesse aqui comigo. Você e o Rafinha.
- Não é o momento, Gustavo. – Ela disse. Eu tinha certeza que ela sentia a mesma coisa que eu, mas estava ferida e eu respeitava isso.
- Eu só queria que você soubesse que eu não me orgulho do que fiz com você e com o nosso filho esse ano. – Eu disse. – Eu juro que não fiz por mal.
- Gustavo, você tem ótimas qualidades. Você é um homem bacana, só que suas atitudes nos últimos tempos não condizem com as do homem com quem eu me casei, o homem que eu amo.
- A gente não podia aproveitar que temos um ano novo chegando e tentar de novo?
Eu ouvi um suspiro dolorido dela. Por que as coisas eram assim tão complicadas?
- Eu acho que ainda é cedo, Gustavo. Não estou dizendo que eu não queira. Mas tudo isso me deixou muito abalada. Eu preciso ter certeza de que não vou passar mais por tudo aquilo de novo. Nosso filho estava sofrendo. Eu estava sofrendo.
- Eu prometo pra você que esse ano vai ser diferente. – Eu disse, encarando o mar. – Eu juro, Samara. Aí a gente vai ser feliz como a gente sempre sonhou. Tchau.
- Tchau, Gustavo.
Desliguei o telefone tentando não chorar quase ao mesmo tempo em que os primeiros fogos de artifício anunciaram que 2011 havia acabado de nascer. E eu o abracei como o ano da minha vida.
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O diabo não quer (só) a sua alma
Narrativa generale"É o seu trabalho, Gustavo." Algo disse dentro de mim, a cena típica em que você tem um anjo em um ombro e um diabo em outro, e eu não sabia qual deles estava falando. "Você precisa ir." Gustavo é um rapaz de apenas 25, recém-casado e pai de um bebê...