1

3 0 0
                                    

Quando a esmola é demais, até o santo desconfia.

- Ditado popular

Deitei na minha cama ainda feita e senti a minha pele queimada de sol arder assim que roçou contra o lençol. O "ai" que escapou por entre meus dentes foi automático. E pensar que eu tinha ido apenas uma única vez à praia nesse ano desde que ele havia começado, quatro meses atrás, e ainda assim eu não tinha ficado nem um pouco assado ou com marca dos óculos escuros ao redor dos meus olhos como estou agora. Eu nem mesmo tinha usado filtro solar na ocasião (ou tinha?), coisa que estou abusando ultimamente a ponto de parecer a Xuxa em propaganda da Monange todas as manhãs antes de sair do prédio sede da empresa em que trabalho, a Águas do Brasil. Com um pouco de esforço e muitos movimentos cuidadosamente calculados, consegui me acomodar de forma confortável. Respirei aliviado.

Olhei para o teto de forro de madeira do meu quarto e deixei meus pensamentos divagarem sem me fixar em nenhum em particular. Pelo menos por poucos segundos, até que tudo se apagou.

O som de uma campainha atingiu os meus ouvidos como se houvesse uma fanfarra inteira a 5 centímetros dos meus ouvidos. Minha mão, já adestrada, achou o meu celular e apertou o botão que fez aquele auê parar sem que eu precisasse abrir meus olhos. Antes eu pude sentir o ar frio que entrava pela minha janela, diretamente acima da minha cama como há muito tempo eu não via em um mês de abril, meu cérebro deu início ao seu ritual-de-antes-de-acordar: algumas perguntas encontravam suas respostas sozinhas. Que dia da semana é hoje? Terça-feira. Hoje é algum feriado nacional? Não. Sinto algo que me obrigue a me arrastar para o posto de saúde e conseguir um atestado? Hmm... Checando. Não, está tudo o.k. com o físico. Nenhuma dor, nenhuma possibilidade de gripe. Ossos e músculos inteiros. Não, definitivamente. Há algum outro motivo que me permita virar para o lado e voltar a dormir? Não. Hoje é um dia normal. Apenas acorde!

Merda. Abri os olhos e me sentei na cama. Apenas segundos haviam de passado das 05h30min da manhã em que o meu despertador me devolve à minha realidade. Em apenas 15 minutos eu ia ao banheiro, tomava um café com leite, arrumava a minha pasta com uma roupa extra, conferia o meu material de estudo e então vestia o uniforme que me fazia querer me arrastar pro fundo do meu guarda-roupas e morrer. Então saia e pegava o ônibus que me deixaria a 10 metros da entrada da Águas do Brasil.

Em cerca de uma hora depois disso - em média - eu estaria em alguma das muitas ruas de Blumenau - Santa Catarina - indo de casa em casa conferindo nos hidrômetros - ou relógio de água, ou medidor de água, se você preferir - quanto aquelas pessoas haviam consumido nos últimos 30 dias. Os 4 números pretos eram digitados em um pocket que trazia um sistema que fazia o cálculo do consumo e então enviava essa informação para uma impressora portátil que eu estava carregando na parte baixa do meu abdômen via Bluetooth, que então imprimia a fatura que eu deixaria para o cliente, antes de ir para a próxima casa. Simples, não?

Bom, nem tanto assim. Apesar de esse processo estar se repetindo diariamente há pelo menos 3 meses inteiros, ainda há alguns problemas que já foram relatados e nunca arrumados que tornam esse processo realmente muito lento. Sem contar a série de informações desnecessárias que eu preciso prestar antes de continuar o trabalho: você deixou a fatura aonde? A)para o cliente B)na caixa do correio C)no portão D)embaixo da porta E)recusado pelo cliente.

Eu ainda não mencionei que estava carregando uma bolsa a tira colo, mencionei? Verde escura, ela trazia o logo da Águas do Brasil bordada em branco. Estava abarrotada com nada menos do que 5 bobinas que traziam impressos os campos da fatura esperando serem preenchidos, mais outro rolo com adesivos para fechar a fatura e impedir que vizinhos bisbilhoteiros ficassem fuçando onde não eram chamados ("Por que que o Fulano gasta só isso se ele mora com 5 pessoas e eu que moro sozinha gasto mais?"), um maço de panfletos explicativos sobre a importância das obras que estão ocorrendo em toda a cidade para o futuro, além de 15 folhas onde estavam impressos todos os clientes que eu teria que visitar hoje e todas as informações que eu precisava (?) saber sobre ele, com nome, endereço, número do hidrômetro, se era residencial, comercial ou não, cadastro dele como cliente, e o campo onde eu deveria anotar a leitura que eu tirava. Essa folha era o nosso rol de leitura. Além de coisas minhas como um pacote de bolacha e uma garrafa de água. Tudo isso - bolsa, pocket, impressora - estava pendurado no meu pescoço. Nunca me dei ao trabalho de pesar tudo isso só pra ter uma noção de quanto minha coluna sofria na parte cervical. Bom, se a segurança do trabalho não se dava a esse trabalho, não sei se eu me preocupar faria alguma diferença.

Em pouco tempo o sol saiu do meio das nuvens e me atingiu em cheio com seus raios quentes. Apesar de estarmos no outono, o clima estava típico da estação, com dias quentes e noites geladas. Não demorou para que a minha pele já queimada e avermelhada reagisse, apesar de eu ter passado o protetor solar. Olhei no relógio e conferi que ainda tinha pelo menos mais 6 horas de trabalho pela frente, desse mesmo jeito que descrevi até agora.

Não é que eu não goste de fazer o que eu faço. Na verdade a liberdade de não ter um chefe bufando por cima dos seus ombros é bastante agradável e você sempre pode achar algum modo de tornar a jornada mais aproveitável. Pelo menos era, até meu chefe se tocar de que nós estávamos apenas a distância de 9 números. Meu celular começou a tocar Retirantes, aquela do lerê lerê da novela A Escrava Isaura interpretada por Rogério Machado, toque escolhido para eu saber que era ele. Revirei os olhos quando confirmei o nome no visor.

- Alô? - Falei automaticamente, enquanto equilibrava o pocket, o rol e caneta numa das mãos.

- Gustavo? - Ele falou. - E aí, velhinho?

Não importa quem fosse, ninguém conseguia escapar de ser chamado de velhinho em algum momento do dia.

- Fale, Ricardo. - Respondi.

- Ô velho, a Cristina não veio hoje de novo e tu sabe que a gente vai ter dois feriados esse mês, né?

Sim, eu sabia. E...?

- Se a gente não girar vai atrasar tudo pro mês que vem, então será que tu consegue terminar aí até meio-dia e dá uma força nisso à tarde? Eu coloco alguém pra te ajudar.

Hmm... Vejamos. Eu tenho 324 leituras para fazer do meu trecho - uma rua geral e duas transversais pequenas - essa impressora funciona na velocidade que os velhos fazem amor, isso foi criado para que nós pudéssemos trabalhar pelo menos 6 horas por dia e ele queria que eu fizesse em apenas 4? É, acho que não ia rolar.

- Não sei se dá, Ricardo, porque...

- Não, cara, eu sei que tu consegue. Até agora tu sempre conseguiu fazer todos os trabalhos que foram passados. Eu peço pro Gabriel te ajudar.

Suspirei. Foi tudo o que pude fazer naquele momento.

- Tá, eu vou tentar.

A minha frase chegou aos ouvidos do Ricardo como "Claro! Vou adorar ficar torrando no sol o dia todo e provavelmente passar o início da noite em um lugar que eu não conheço caçando hidrômetros!"

Ligação e ânimo encerrados, eu apenas enfiei o celular no bolso tomei um longo gole de água. Mais uma noite que eu ia faltar na faculdade. Só mais uma vez. Depois eu recupero.

Fechei a garrafa e continuei o trabalho crente que essa fase de adaptação estava próxima do fim. Mas não estava.

O diabo não quer (só) a sua almaOnde histórias criam vida. Descubra agora