[1] Eu nunca lhe direi

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O céu noturno, antes limpo, tornou-se um grande véu avermelhado. As nuvens simplórias unem-se à fumaça espessa que emerge da construção destruída pelo fogo.

Olho para trás uma única vez, tentando, por Deus, não massacrar-me pelo crime hediondo que acabei de cometer. O sopro do vento forte, contribuía para que o fogo se espalhasse pelas vigas de madeira da casa, abraçando a residência em imensas chamas descontroladas.

O incêndio foi causado por mim, Dimitri Blackheart. Não sou piromaníaco e tampouco tive prazer em ver aquela moradia arder nas impulsivas flamas.

Era a minha incumbência. Mate-os silenciosamente, Dimitri. Queime a casa. Destrua os Illuminatos. Não apiede-se. Mantenha o coração frio e a mente fechada.

Mas não obedeci fielmente as regras, e pereço por dentro. Estou morrendo aos poucos, deixando nesta terra nada mais, nada menos que destruição, ruína e mortes.

Corro pelo bosque escuro sendo guiado por esta lua cheia pregada no céu, que parece marcar meus passos, olhando para meus pecados, iluminando minha alma obscura. Meus instintos, antes aguçados, estranhamente transformam-se em um aglomerado de sentidos tortuosos que me torturam prendendo-me em um labirinto de dores e arrependimentos. Minha visão está falha, assim como a minha velocidade.

Não posso permitir que estas emoções dominem-me. Sou um Assassino treinado. Não um facínora qualquer que mata a custo de nada, ou um matador de aluguel que afoga suas mágoas na bebida, a fim de esquecer o dia cheio e sanguinolento. Eu aguento as minhas ilusões até onde consigo.

Depois de hoje, não sei se conseguirei prosseguir como o gélido Assassino de olhos de sangue, ou se me renderei a bebida forte para esquecer os erros que tracei até aqui, marcados em minha alma com sangue daqueles que matei.

Enlouquecerei. Disto tenho plena e absoluta certeza.

Faço parte de um antigo clã de Assassinos e fui designado a uma missão quase suicida. Um encargo que custará minha sanidade, e muito brevemente, minha própria vida.

Dentro daquela casa incendiada, no segundo andar, deixei dois cadáveres sobre a cama. Foram mortos por mim. Eram Illuminatos. Serviam cegamente ao Grande Mestre dos Illuminatos, o infame Lucius. Era a minha missão. Deveria tê-la feito rapidamente sem questionar as orientações do Sr. Sameque.

A luz do potente fogo refletia em meus olhos, saciando a minha alma. Tudo deu errado no momento em que adentrei o segundo quarto e encontrei, sobre o leito, o menino que agora jaz em meus braços, adormecido. Era filho deles. Apiedei-me. Ora, não sou um demônio. Ainda tenho coração. Não podia... Não, Deus, esta pequena criança não merecia ser deixada para morrer.

Não. Pelo amor dos meus filhos.

Salvei a criança filho do Cavaleiro Negro. Há sangue de Illuminato correndo nas veias pueris deste menino. Estou tão ferrado por quebrar a terceira regra da minha grei.

Estou sendo piedoso. Dimitri Blackheart, o salvador.

Ma che cazzo!

Gemo com o peso em questão em seus braços do menino ainda adormecido. Ainda sinto o cheiro da fumaça que atordoa meu olfato. O calor do fogo percorre em meu corpo, como se eu ainda estivesse dentro da casa em chamas. Cá estou eu, "queimando" literal e figuradamente.

Paro um pouco, encostando meu corpo contra o tronco repleto de fungos de uma árvore morta. Respiro como se aquele ar que passeasse em meus pulmões fosse algo raro e extinto. Ajeito o garotinho em meus braços. Ele pesa muito mais que meu filho.

Contemplo o garotinho que enrolei em muitas cobertas para protegê-lo do fogo. Dorme tranquilamente, como um doce anjo. Nos cabelos da cor da neve, flocos acinzentados prendem-se nos fios. Por baixo das cinzas que sujam seu rosto, as bochechas apresentam demasiado rubor. Rezo para que ele não esteja com febre.

Sei para onde levá-lo. Não posso adentrar com ele na fortaleza. Não entenderiam. E não estou a fim de ser questionado. Vou encarragar-me de dar abrigo a ele, no meu esconderijo. Nas montanhas de Florença, ao lado de um riacho límpido, habito em uma caverna. Lá é o meu lar. O lugar onde de vez em quando, visito para pensar, para ficar longe de toda a tormenta.

Agora será o lar desse menino.

Se parte da minha alma está condenada ao inferno, pelo menos, através desta vida que salvei, ao menos contemplarei a porta de ouro dos céus em minha punição eterna.

Rompo pela entrada da caverna. O garotinho solta um grunhindo semelhante ao de um filhote de cachorro. Era o que temia. Ele está ardendo em febre. Não o leve, Deus. Permita que ele viva mais um dia.

Aconchego-o sobre o leito improvisado feito de palha, enquanto o pobrezinho soluça, quase abrindo os olhos.

O que direi se ele me ver? Se ele notar que não está mais uma casa confortável, mas em uma caverna escura e imunda, sendo vigiado por um homem de olhos cor de sangue?

Salto até o riacho molhando um pedaço de pano para pôr em sua testa abrasada. Repouso sobre a fronte do garoto o pano úmido, na mesma medida em que a culpa envolve meu obscuro coração.

— Está tudo bem agora — sussurrou para o pequenino adormecido. — Tudo ficará bem.

Ele abre seus olhos da cor da terra molhada. Talvez, delirante, não tenha notado que tampouco está em sua antiga casa.

— Onde estou? — sua voz trêmula e minha alma é suprimida pela angústia.

— Está a salvo — é tudo que consigo dizer.

— Mamãe... Papai... — seus olhos agitam-se na face avermelhada.

— Precisa descansar, jovenzinho. Quando acordar, explicarei tudo.

O menino fecha os olhos outra vez, mas não está dormitando.

— Quero minha mamãe e meu papai — uma lágrima corre pela lateral de seu rosto. — Bondoso senhor, traga-os para mim. Eu te imploro.

Isso foi mais que suficiente para quebrar por completo, o restante do Assassino gélido que sobrou em mim, e fizesse com que eu me odiasse verdadeiramente.

Naquela mesma noite de lamúrias, descobrir que seu nome era Malquior. Agradeci por ele não lembrar de seu sobrenome. Orei para que a febre não o matasse. E escondi no fundo da minha mente, o fato horrendo que poderá mudar nossas vidas para uma torrente maior de desgraças.

 Nunca lhe direi que matei seus pais.


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Olá, pessoas. Aqui é a Mymy. Eu resolvi reescrever o capítulo (dessa vez em primeira pessoa), porque não estava conseguindo me conectar com o personagem na terceira pessoa. Quero mostrar a angústia e loucura de Dimitri e fazê-los ver sob o ponto de vista dele, o "anjinho" do Malquior. Beijinhos e tchau.

Assassino dos Olhos Cor de Sangue [fanfic]Onde histórias criam vida. Descubra agora