[7] Espinho na carne

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Um diário. Uma criança. Um assassino.

A silenciosa aranha emaranhava seus fios invisíveis de discórdia enquanto o meu passado e meus erros retornavam para assustar-me.

— O que disses, Malquior? — tremulo dos pés até o último fio de cabelo.

— No treino de hoje, nosso instrutor questionou isso. Ele perguntou para nós, qual seria o nosso maior pecado.

— E por que estais mexendo em meu diário?

— Sabe, mentore — diz, desviando-se completamente do que questionei para ele —, ainda sou uma criança, mas obviamente não sou tolo. Quando eu era menor, sempre achei que o incêndio de minha casa fosse um acidente. Mas agora, percebo que não! Aquilo foi proposital.

Oh, merda! Ele descobriu.

— Aonde quer chegar com isso? — por que ainda questiono-me... Obviamente, ele lera o diário. Descobrira de modo nada gentil as atrocidades que já fiz.

— Diga-me, mentore... — Malquior suspira, fechando o caderno. Toma postura de adulto, assombrando-me. — Se algum vilão destruísse tudo que conheces, assassinasse sua família, queimasse sua história... o que faria? Daria o troco? Seria cruel com o vilão?

O que isso significa? Devo escolher a minha forma de tortura?

— Qual a sua resposta, pupilo?

— Eu me vingaria! — pressiona o maxilar, tornando seu rosto uma dura máscara de rancor. — O faria pagar, destruindo tudo e a todos que ele mais ama.

— Há outras formas de vencer o mal. Vingar-se só mostraria que és inferior.

— Obrigado, mentore — devolve-me o caderno. — Esta foi uma conversa deliciosamente agradável.

— Malquior, leu todo o conteúdo deste diário?

— Não passei da primeira página. Deseja mais alguma coisa?

Balanço minha cabeça em uma negativa acuada.

— Tenha uma boa noite, mentore.

❈❈❈

No dia seguinte, resolvi que levaria Malquior para uma breve caminhada nas colinas pardas de Jerusalém. Manteve-se todo o tempo, distante e calado. Não ousei comentar sobre o ocorrido da noite anterior. Aquele estranho interrogatório ainda arrepia quando me veem a mente. Confiarei no que ele disse, quando não lera meu diário.

Será se Malquior sabe? Sabe que é filho de um Illuminato? Que carrega o sangue da Seita nas veias? Oh, Deus, que a verdade jamais chegue. Antes disso acontecer, desejo estar morto e enterrado.

— Aqui. Paremos aqui. — digo para meu discípulo.

Malquior senta-se perto dos arbustos secos. Abraça as finas pernas contra o peito e em momento algum, tivera a nobreza de encarar-me.

— Por que estamos no meio do nada, Dimitri?

Essa é a primeira vez que Malquior chama-me de maneira tão informal. Encaro-o, um tanto perplexo. Mascara a voz ríspida com uma espécie de humor cínico.

— Encontrei há alguns dias, uma lebre presa em um arbusto de espinhos — mostro-lhe o pequeno animal de pelo amarelo. — Cuidei dela por muito tempo e agora estou lhe presenteando.

— Gostas dela, mentore?

— Sim, muitíssimo.

— Obrigado — sorrir, apertando a lebre contra o peito.

❈❈❈

Dias depois, quando retornei de uma breve missão, encontro a lebre que presenteei à Malquior, morta, com golpes de faca sobre o minúsculo corpo peludo. Agarra-o pelos ombros, sacudindo-o, esquecendo-me até mesmo da desigualdade de nossas forças. Mira-me, com os arregalados olhos castanhos lacrimejados.

— Por que estou vivo, mentore?

— O qu...?

— POR QUE NÃO ESTOU MORTO COM OS MEUS PAIS? POR QUE EU NÃO MORRI NAQUELE INCÊNDIO?

— Malquior, pare de dizer asneiras!

— Por que salvou só a mim, mentore? Por que não salvou os meus pais?

Engulo minha saliva a seco, fitando o garoto desequilibrado com palidez.

— Esqueça! — empurra meus braços para longe dele. — Eu gostaria que o senhor estivesse morto, como aquela lebre ali! — aponta para o corpo do animal esfaqueado. — Morto!

Dispara para o quarto, deixando-me aflito e angustiado. Sento-me em uma cadeira, sentindo que vou desabar a qualquer momento. Esfrego as mãos no rosto, tentando livrar-me deste pesadelo.

À noite, entre um copo de erva-de-tigre e outro, espero a sonolência vir. Rememoro o que Malquior me dissera. Soara como uma ameaça. Ele sabe, Deus, o que eu fiz. Ele sabe e certamente me torturará psicologicamente até que eu confesse.

❈❈❈

Acordo tarde, com dores profundas no corpo. Minha cabeça lateja demasiado e minha visão custa a recobrar. Não embriaguei-me na noite anterior, apenas tomei meu rotineiro chá... a não ser que houvesse algum líquido ilícito nele.

Olho ao redor, e parece que um furacão visitara meus aposentos. Tudo está revirado. Minha caixa com poções venenosas, sumira. Minha adaga e minha capa também. Meu diário está no chão, com as páginas abertas. Rastejo-me até ele, folheando-o, notando que as duas páginas finais foram arrancadas, logo as que tinham as anotações mais importantes.

Ergo-me, grogue, gritando por Malquior. Ando por nosso esconderijo escuro, sempre a gritar o nome de Malquior, mas ele não virá até mim, mesmo se eu esgoelar-me e implorar por sua presença...

Porque o meu, até então, obediente pupilo fugira da guilda.

Assassino dos Olhos Cor de Sangue [fanfic]Onde histórias criam vida. Descubra agora