[4] Apreensão

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— Veja, Mestre! — aponta o pequeno Malquior, para a costa esverdeada, enquanto as águas sacolejam a embarcação.

— Isso significa que estamos chegando — sorrio para ele.

Tem sido difícil — extremamente difícil — manter sobre meu rosto toda essa máscara fajuta de tranquilidade. Quando os olhos castanhos de Malquior encaram os meus, o rosto resplandecendo uma doce felicidade, sinto que estou arrancando deste pequenino uma parte de sua vida que nunca retornará.

E a mim também não.

Guio meus dedos calejados pelo sol até o bolso interno de meu casaco, retirando uma pequena ampola contendo rum. Bebidas fortes deixam-me alerta, mascaram meus pensamentos e entorpecem meus sentidos.

— Mestre, por que o senhor sempre bebe essa coisa?

— Para começo de conversa, quero que pare de chamar-me de "mestre". Para você, sou apenas Dimitri, entendeu? — observo-o acenar com a cabeça. — E depois, não quero ter de explicar para uma criança, porque bebo isso. — mexo a garrafinha em minha mão. — Ainda és jovem e certamente, um dia, hei de explicá-lo.

— Ah! — a boca de Malquior torna-se um círculo perfeito. — Meu pai também dizia a mesma coisa... — inclina a cabeça fitando o chão de madeira da embarcação. — Mas agora sei que ele nunca vai me explicar nada desta vida, porque está morto.

— Ei — apanho a sua mão, a culpa consumindo-me veemente, mastigando minhas entranhas. — Eu estou aqui. Serei teu professor nesta vida. Já não lhe prometi que encarreguei-me de protegê-lo?

— Eu sabia. És mesmo meu anjo da guarda. Meu herói.

Gostaria tanto que ele não disse tais palavras.

Malquior enxuga as lágrimas, com dedos pequenos e roliços deslizando pela face corada. Assente com a cabeça. O manterei ao meu lado tempo suficiente para que não criemos laços, Malquior Drakonov, porém a verdade... esta nunca lhe contarei.

Batuco meus dedos na empunhadura de minha espada, chamando a atenção de Malquior.

— E um dia, eu posso ter uma espada como a sua?

— Para isso, terá de provar o seu valor. Assim terá uma espada tão boa quanto Serafim.

— Sua espada se chama Serafim?

— Sim. Minha espada carrega o nome de um anjo.

— Que coisa incrível, mestre!

A essa altura, já tornou-se impossível proibi-lo de chamar-me de mestre.

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Assim que deixamos a embarcação, atrelo minha mão a de Malquior, impedindo-o que se perca no cais. Pago-lhe um prato de comida e um copo de água. Está cansado, o corpo febril e o rosto muito sujo.

— Prometo que quando chegarmos a guilda, poderá lavar-se.

Engole a comida, esfomeado, esfarelando o pão com os dedos, mergulhando na tigela com ensopado. Esboço um sorriso diante de tamanha inocência. Talvez, Deus, ele possa ser a minha redenção. Se eu encontrar uma boa família para Malquior, estarei apagando os meus pecados e poderei encontrar a paz enfim. Voltar para meu lar e viver como se nada tivesse acontecido.

Terminamos nossa refeição e partimos para encarar o vasto deserto que nos aguarda. Compro um dromedário, o que faz com que Malquior gargalhe muito por conta da corcunda do animal que era desconhecido aos seus olhos até então. As risadas duram pouco, assim que decidimos enfrentar as areias escarlates. Logo após, o menino inicia uma torrente de reclamações chiadas. Ou pelo sol infernal que nos castiga, ou pela ausência de água.

Assassino dos Olhos Cor de Sangue [fanfic]Onde histórias criam vida. Descubra agora