- Daqui pra frente não pode haver erros. Se não formos cuidadosos, podemos ser pegos, ou até mesmo mortos. – os outros balançaram a cabeça. Se você os visse mais de perto, aliás, contemplaria em seus rostos aquela jaez de confiança de quem sabe o que está fazendo. Saíram um a um do alçapão, anexado à parte lateral de um galpão decadente. Numa espécie de U, o buraco apertado tinha duas aberturas, uma dava em um beco e a outra dentro do esconderijo. Irromperam no beco desconfiados. Embrenhados no pauperismo de vestes surradas, encardidas e puídas. Avançaram pelas ruas costurando becos e vielas vazias. Observados pelos casebres úmidos e espectrais, do fim de uma idade média na qual os subúrbios não diferenciava ratos de homens. A manhã estava fresca como uma virgem, e do mar subia uma brisa revigorante. Chegaram juntos a uma rua próxima à feira central, ladeada por sobrados deteriorados. Naquele ponto o movimento de transeuntes era crescente e havia diversas ruelas em direção ao mar, antes, porém, um labirinto de lonas dispostas numa paleta de bege, confundia as vistas dos mais circunspectos.
– Aqui nos dividimos. – Ordenou uma última vez sua trupe, sua família esfacelada. Como roedores, eles se dispersaram pelos becos próximos à feira e logo se misturaram com a multidão. O líder, acompanhado de outros dois, atravessou-a a passos rápidos. O cheiro de peixe pairava mais forte que o normal. A gritaria habitual dos vendedores era confusa e ensurdecedora. A feira era um centro comercial onde poderia se encontrar de tudo: Especiarias trazidas de outras terras, porcos, cabritos, galinhas, peixes e frutos do mar. Abastecia tanto o povo da cidade quanto os navios que partiriam ao oceano. Marujos carregavam sacas e caixotes por todos os lados exalando peixe morto, sabe Deus se o odor provinha deles ou do que carregavam. O cais era uma geringonça desajustada, com engrenagens que funcionavam fora do tempo e lutavam para se encaixar em meio ao caos. Com diversos navios e pequenos barcos ancorados nas docas, ondeando diante da instabilidade do mar e, com mais homens e suas infinitas caixas.
Como dedos fincados em areias movediças, os píeres se estendiam por mais de cem metros mar adentro. O mais antigo, de pedra, fora construído de blocos rochosos aproveitando uma barreira de corais como alicerce. Sobre ele, um pequeno castelo despontava como alfândega e torre de vigília. As docas se estendiam lateralmente ao longo desses píeres. Galés de todos os tamanhos atracavam em paralelo às plataformas, de acordo, é claro, com o humor da maré. Além do píer de pedra, havia mais três, tão extensos quanto, só que feitos com toras e ripas de madeira. Perto de um deles, parados ao lado de uma fenda no chão, o líder acompanhado dos outros dois dissimulavam, vez ou outra, olhando para cima, onde um bando de gaivotas parecia reclamar da vida. Do alto de um casebre, o reflexo dum espelho indicou que todos chegaram às suas posições. Foram impelidos instantaneamente. Desceram espremidos pelo buraco no cais, longe de olhares curiosos. Assim que constataram que não haviam sido seguidos, como primatas, saltaram em direção ao mar por entre as bases de sustentação da plataforma. Seguiram em direção às docas por baixo, onde os navios estavam ancorados.
Pés, mãos e joelhos arranhados, não os impediram de chegar ao alvo, um galeão de proa afinada. Estes monstros guerreavam pelos mares, e atravessavam continentes com mercadorias de valor incalculável. E esse era dos grandes. Com seus quatro mastros flutuava imponente exibindo a inscrição desgastada no casco enegrecido: La Concepción. Na linha junto d'agua, a galé era tomada por humo ao redor do casco. Segurando o esporão da proa com seus braços esticados sobre a cabeça, La Bella Dulcinea nunca se fatigava. A esposa da tripulação. Com grandes pedras cor de jade no lugar dos olhos. Esculpida em carvalho e pintada de dourado, como uma amante estendia seu corpo por sob toda a proa. Cuidadosos, os homens de bordo retocavam suas cores a cada porto que ancoravam.
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O Rei das Docas
Historical FictionNo fim da Idade Média, um bando de garotos luta contra as injustiças e crueldades de um mundo inóspito, sombrio e inclemente. Num cenário repleto de piratas, nobres e religiosos inescrupulosos, bruxas e maldições, onde quem se descuidar é destinado...