Capítulo IV O Rei das Docas

12 1 0
                                    

Afastando qualquer intempérie, os anjos ou o próprio Deus trataram de soprar as nuvens mar adentro. A cidade estava em festa, comemorava-se o dia da Patrona, nossa senhora do , uma festança regada de bebida e dança por toda cidade. Eram quase duas da manhã, quando abriram um tecido grosso sobre o piso, cheio de rabiscos de carvão. Traçaram rotas de fuga e também rotas alternativas caso algo desse errado. Tudo fora planejado com muita cautela entre o líder e Pierre, que era uma espécie de estrategista do bando.

– Segundo Pierre, boa parte dos piratas foi para o Algarve, então a chance de sermos pegos é menor. Todo percurso deve ser vigiado até retornarmos. Rico, Aureliano e eu não podemos ser bloqueados.

O festival que durara todo dia e viraria a noite, coloriu a cidade com ofertas de flores e frutos que eram deixadas no meio da praça central em agradecimento. Saíram serpenteando entre as ruas floridas mantendo uma distância entre si, mas de forma que todos pudessem se ver. Quanto mais se aproximavam do porto mais encontravam transeuntes extraviados de si mesmo. Zumbis embriagados e sujos. As pessoas riam e bebiam ao som das sanfonas. Meretrizes dançavam um flamenco desengonçado, pensando rir da vida, quando era a vida que escarnecia delas. Andavam a passos rápidos, sem correria para não chamar atenção desnecessária. Uma olhada para o lado e um homem vomitava em um beco. Apenas o líder, Aureliano e Baú se aproximaram do bueiro. Paulo, um dos gêmeos, os esperava.

– Como estamos? – indagou.

– Até agora tudo bem. Apenas uns bêbados que tive que arrastar daqui.

O local ficava entre dois alpendres e havia sido cercado por caixotes que vinham sido mantidos por eles durante aqueles dias. Os outros membros estavam espalhados, vigiando as esquinas e desviando a atenção de quem passava. Armados, carregavam bastões e facas. Anoop trazia uma arma escondida na cintura, que estava disposto a usar se preciso fosse. O líder desceu o bueiro acompanhado dos mais fortes. Paulo, que vigiava a entrada, após os ver sumindo, acenou com a mão para os mais próximos na esquina, confirmando a descida.

– Está muito escuro aqui – disse Baú.

– O que você queria? É um túnel se imbecil! – retrucou Aureliano.

– Calem a boca, segurem-se em mim. Não podemos acender fogo aqui. – Com o tempo os olhos de todos se habituaram à escuridão. Caminharam apalpando as paredes do túnel devagar para não tropeçar. Havia mais ratos lá embaixo do que pessoas na Espanha e o cheiro era sólido como se respirassem as pelotas de fezes ao invés do ar. Após percorrer a maior parte do duto o líder trombou em algo:

– Estão aqui! – afirmou contente – Me ajudem a pegá-los.

Retornaram com os dois baús seguros pelas alças de corda. O maior era muito pesado. O menor, um bauzinho negro, aparentava estar vazio de tão leve. Este tinha fechaduras banhadas a ouro e um brasão na fronte.

Como suricatos à espera de um gavião, o restante que os esperava, pareciam aguardar uma vida. Apesar de todo o trajeto de ida e volta não ter durado trinta minutos. Um ruído vindo da abertura em seus pés chamou a atenção de Paulo:

– São eles.

Ergueram os baús o mais alto que conseguiram. Paulo jogou duas varas para Aureliano e Baú empurrarem, enquanto ele puxava-os com uma corda. Os missionários subiram em seguida. Paulo puxou os objetos para trás, a fim de facilitar a saída. Quando todos estavam fora, foi dado o sinal de regresso. O líder ia à frente abraçado ao baú menor, que havia sido coberto com uma lona. Aureliano e Baú vinham atrás logo em seguida carregando o maior pelas alças, que também permanecia coberto. Os demais faziam um círculo dissimulado ao redor dos três, observando tudo que acontecia ao derredor. Indo à frente do círculo, o destemido Annop, com a testa franzida, o suor habitual e a mão na cintura.

O Rei das DocasWhere stories live. Discover now