Capítulo IX Apenas um sonho ruim

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Melões, tomates, mangas e carambolas, também compraram peixe e carne. O responsável por preparar tudo foi Baú. O gordinho, que era habilidoso com facas e panelas, havia tempos que não saboreava tantas delicias. Os garotos tinham agora até mesmo uma dispensa e uma espécie de cozinha improvisada, o dinheiro estava sendo bem gasto. Pierre e outros três observavam o menino tirar os miúdos de uma galinha, chocados com a frieza de Baú que separava as tripas e os órgãos do lado da bancada improvisada. Nada se perde, nada se perde. Dizia ele. Abasteceram com lenha um fogão recém-construído e viram o menino colocar a panela no fogo com o frango já cortado em pedaços. Fez também um peixe assado com cebolas, e cozinhou algum feijão. Juan improvisou, no meio do galpão, uma mesa meio irregular usando caixotes. Todos se divertiam, inclusive as duas pequenas convidadas ilustres que andavam agarradas nas roupas de Aureliano onde quer que estivesse. Improvisaram uma bem tosca decoração de toalhas de mesa roubadas de um varal, e velas. Colocaram tudo à mesa. Era tanta comida junta como nenhum deles havia tido, estavam felizes em saber que nas noites o roncar do estômago não os acordaria. Até mesmo Aureliano, depois dos últimos acontecimentos, deixou escapar um ou outro sorriso.

- Temos que ser gratos – Juan começou seu discurso –, gratos pela oportunidade de termos uns aos outros – as velas faziam com que todos estivessem com rostos amarelos vivos, muito parecidos –, gratos por não termos sido pegos, gratos por ainda sobrevivermos e, acima de tudo, gratos pelas habilidades deste gordo feio – todos desataram a rir – Vamos comer!

- Baú, afinal de contas onde você aprendeu fazer tudo isso? – perguntou Galgo, enquanto abocanhava uma coxa de frango.

- Meu tio tinha uma taberna no porto – disse, sem alegria na voz – e eu trabalhei lá depois que meus pais morreram da peste – O gordinho não tinha muita fome, preferiu assistir os amigos comer, aquilo o enchia de alegria.

Após a morte dos pais, como Baú mesmo disse, ele trabalhou com o tio gordurento no porto. Aliás, Baú chamava-se Rico como seu pai.

- Se mexa, seu molenga, e vá lavar esses pratos! – As mãos do garoto gordinho não deram conta de equilibrar as bandejas, e os pratos foram ao chão. Estilhaços voaram para todos os cantos dentro da taberna. Homens e mulheres maltrapilhos zombavam galhofeiros do pobre menino.

- Saia daqui, seu merda! Você é um molenga igual seu pai – o tio expulsou Rico com um chute no traseiro. As lágrimas rolavam de seu rosto. Não por ter se machucado, mas pela dor da humilhação. Do canto da baiúca, Juan pode ver o garoto fugindo para os fundos...

- Olá! – Numa viela ao lado do recinto, alguém cumprimentou o garoto que estava sentado chorando com a cara entre as pernas. Rico torceu o pescoço para ver quem falava com ele.

- Quem é você? – indagou triste.

- Sou um amigo. Me chamo Juan.

- Eu não tenho amigos... Na verdade... Eu não tenho ninguém.

Juan observou por um tempo, sabia o que o outro sentia – pode vir com a gente se quiser.

Rico viu atrás de Juan outros garotos que se mantinham a certa distância. Mais tarde saberia que eram: os gêmeos, Anoop e Aureliano. Os primeiros membros do clã.

- Quem são eles? – Perguntou, confuso.

- Meus irmãos – Juan falou, com um sorriso.

Rico comparou-os, incerto.

–Eles não se parecem nada com você – falou.

Juan virou para os amigos. Em seguida para o gordinho – você não olhou direito. Veja: nós somos iguais. Algo em Juan e em suas palavras preencheram o coração do garoto. Bastara apenas dois dias. Mais uma surra do tio e ele já estava com os outros no galpão. Como se o passado tivesse sido apenas um sonho ruim.

***

Eles estavam um pouco mais limpinhos desta vez. Esperavam em fila como nos outros dias, só que mais tensos. Remexiam-se esperando Agostina chegar. Esta vinha acompanhada de Esperanza, a criada de rosto frívolo. Ao se aproximar dos garotos, Agostina logo percebeu que havia algo errado.

- Olá, meninos, como estão?

Os garotos se entre olharam melindrosos. Juan deu um passo à frente:

- Senhorita, nós temos um problema! – Agostina retesou desconfiada para Esperanza – traga-as, Aureliano – disse Juan. Aureliano entrou em um bequinho próximo de onde estavam e trouxe as meninas pelas mãos. Agostina, surpresa, vendo aqueles dois anjinhos, foi tocada por sua enorme compaixão. Quando as meninas se aproximaram, agachou para beijá-las.

- Oi, tudo bem com vocês? – perguntou. As garotas mudas procuraram Aureliano com os olhos.

- Respondam para senhorita, não sejam mal-educadas. – Ramona, a mais velha obedeceu.

- Estamos bem, senhorita. – Disse, se inclinando, segurando as pontas opostas do vestidinho com as pontas dos dedos. A pequena Dos Anjos, que estava agarrada na saia da irmã, soltou-se e começou a andar em direção à moça que ainda estava agachada. A garotinha segurou o rosto da jovem com as duas mãos e começou a examiná-lo.

- Você parece com a mamãe! – Aureliano conteve as lágrimas.

Os rons tinham características muito distintas, tanto pelas roupas quanto pela cor da pele. Agostina desconfiava que as meninas fossem pequenas ciganas, e sabia dos acontecimentos e da confusão na praça. Levantou-se e foi em direção à Esperanza.

- Juan, eu vou levá-las. – Falou sem olhar pra ele. Juan virou-se para Aureliano, que aceitou com um gesto de cabeça.

- Esperanza, peça para que Hidalgo se aproxime com a charrete. Vamos levá-las conosco – quando a criada pensou em questionar, Agostina interrompeu seu pensamento.

- Não queira desacatar minha ordem, Esperanza! Vá trazer Hidalgo com a charrete. – poucas vezes Agostina saía do tom, e a criada achou melhor não questioná-la.

- Obrigada, senhorita. Nós até cuidaríamos delas, mas acreditamos ser perigoso.

- E os pais? – Juan novamente buscou Aureliano, que respondeu à pergunta.

- Não estão mais entre nós.

Agostina não fez mais perguntas. Talvez porque mais uma vez não queria saber as respostas. A charrete veio se aproximando do local onde estavam. Aureliano abraçou as irmãs com muita força.

- Sejam boazinhas, a senhorita vai cuidar muito bem de vocês. Essa será uma ótima oportunidade pras duas – por mais improvável que possa parecer, as garotas não contestaram ir embora com a desconhecida. As garotas tinham o espírito peregrino dos rons a correr em suas veias.

Após despedirem-se de todos, as meninas subiram na charrete com a ajuda de Esperanza, que já parecia gostar da ideia. Agostina trouxe mais algumas mudas de roupas limpas e um saco de moedas que entregou a Juan. Alguma das famílias de seus criados cuidaria muito bem das meninas, e ela os ajudaria acompanhando seu crescimento.

- Aqui está o restante do dinheiro que faltava pelas moedas que você me deu – o saco de moedas era maior que o primeiro. Os garotos, que aprenderam a viver com pouco, não tinham gastado quase nada do outro.

- A senhorita tem certeza, há muito aqui.

- Tenho sim. Tome cuidado com o ouro que vocês têm, este dinheiro pode ser perigoso.

- Pode deixar... Nós sabemos.

O Rei das DocasWhere stories live. Discover now