Capitulo 6 - Beatriz

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Era domingo e, por um milagre divino, o sol resolveu dar as caras naquele dia. A noite anterior foi marcada por choros constantes e pensamentos confusos que iam e vinham na minha cabeça. Houve alguns momentos na noite em que eu pensei que estivesse perdendo a sanidade mental.

Não sabia o que estava acontecendo. Sempre fui equilibrada, vivia uma vida simples, mas aquilo me fazia feliz. Não tinha grandes preocupações. Quer dizer, era comum eu me preocupar com o dinheiro — se conseguiríamos pagar todas as contas e fazer as compras do mês e tal —, mas isso não me fazia enlouquecer e nem entrar em pânico. Eu sinceramente estava sentindo falta do cheiro do campo e da paz que aquele lugar trazia.

Por que eu tinha que sair de lá? Eu poderia arrumar um emprego qualquer e continuar vivendo a minha vida simples, mas acabei caindo na conversa da minha madrinha. Sempre tem que ter alguém para te dizer o que você deve fazer e quem você deve ser. É como estar sempre sem fôlego, correndo atrás de algo que não temos e que nunca conseguiremos alcançar, ou por pressão dos outros ou pela nossa própria pressão. E acabamos esquecendo de viver o agora; e é nesse esquecimento que mora o desespero, a depressão e todas as frustrações.

E era assim que eu estava, deitada em uma cama, sem forças para levantar, simplesmente pelo fato de estar em um lugar que não escolhi estar. Por que que a vida tem que ser assim? Por que temos que viver vidas que não escolhemos ter? Por que somos pressionados o tempo inteiro? Pressionados a ser quem não queremos ser... Isso dói, isso machuca. Por mais que tentemos e nos esforcemos para conseguir ser aquilo que desejam de nós, uma hora tudo cai por terra e a fadiga acaba nos enfraquecendo, sugando a nossa alma e matando a verdadeira pessoa que um dia existiu em nós.

Foi em meio a esses pensamentos que caí no sono e, sinceramente, preferiria ter continuado a dormir por longas horas...ou dias, ou anos. Não estava mais vendo sentido em viver uma vida que não era minha. Mas como eu poderia voltar agora? Tinha medo de desapontar meus pais, de jogar fora todos os esforços que eles fizeram para que eu estivesse ali. Então eu precisava ser forte, precisava levantar e tentar continuar vivendo a vida de uma pessoa que não era eu. Mas não é isso o que fazemos o tempo inteiro? Vivemos em um teatro, tentando agradar todo mundo o tempo inteiro, acabando por esquecer aquilo que realmente somos.

Só que se eu continuasse lá, também teria que viver dentro de um sistema podre, trabalhando como um robô, provavelmente com algo que eu também não gostaria, ganhando uma mixaria. Os salários não acompanhavam a inflação, nada poderia acompanhar os preços da crise. Só que pelo menos eu estaria perto da minha família. Ai, meu Deus. Eu me sentia como um pássaro encurralado, sem escolhas, sem ter como voar e encontrar um lugar certo para mim.

Levantei e segui para o banheiro. Tomei banho e comecei a pensar em tudo o que eu precisava fazer naquele domingo. Se eu estivesse em casa, certamente andaria a cavalo com Rafael, depois veríamos o pôr do sol até que a última estrela caísse, mas, infelizmente, essa realidade não me pertencia mais.

Coloquei um vestido leve, uma jaqueta e fui para a sala do hostel. Eram exatamente dez horas da manhã e o lugar estava vazio, graças a Deus. Abri o notebook e desejei de todo o coração que o menino que iria me ajudar com a casa aparecesse, mas enquanto ele não aparecia, comecei a pontuar tudo o que eu precisava resolver. Eu já não tinha mais tempo para passear por Dublin atrás de um garoto que eu mal conhecia. Talvez ele tenha sido apenas um refúgio ou até mesmo uma forma de esquecer de todas as coisas que eu tinha que fazer. Mas eu ainda estava muito confusa para saber o que estava acontecendo.

Será que eu estava usando ele para esconder o meu medo de começar a viver o intercâmbio? Medo de não conseguir resolver nada, medo de frustrar os meus pais, medo de frustrar a mim mesma? Não sei, mas não é isso o que fazemos o tempo inteiro? Quando temos que fazer algo que não queremos? Inventamos uma desculpa para postergar e evitar o inevitável, até que não tenhamos mais tempo para adiar.

Então esse dia chegou, e eu tive que tomar coragem para começar de verdade, para pensar de verdade nas coisas que eu tinha que fazer. Primeiro eu precisaria arrumar meus materiais e os meus documentos, pois as minhas aulas já começariam no dia seguinte. Depois eu teria que procurar grupos no Facebook, onde pessoas dividiam casas. Tinha, também, que mandar e-mail para a agência e perguntar se eles já tinham marcado a minha visita na imigração para tirar o documento que me permitiria trabalhar, e ainda teria que pensar em quais lugares iria entregar o meu curriculum.

Em meio aos pensamentos desesperados, escutei uma voz.

— Olá, quanto tempo — disse Jorge, e eu me assustei.

— Bom dia! — respondi. — Te procurei ontem.

— Pois é, eu tive que resolver alguns problemas e acabei não tendo tempo de vir. Mas aqui estou. Vamos começar? — Ele deu um sorriso acolhedor.

— Eu nem acredito que está aqui. Eu não sabia nem por onde começar.

— Vim para te salvar – brincou. — Então, em primeiro lugar, você já tirou o seu gnib?

— O que é isso? — Fiz cara de interrogação.

— Como assim você não sabe o que é isso? — Ele se assustou e eu me envergonhei. — Tudo bem — ele continuou. — Isso é um documento, parecido com o nosso registro geral, o RG. Você precisa marcar um horário na imigração e levar alguns documentos. Sem esse registro, você não consegue trabalhar.

— Ah sim, a mulher da agência disse que iria me mandar um e-mail explicando melhor. É porque eu não tinha entendido muito bem. — Fiquei constrangida.

— Ah, Beatriz, para! Não precisa ficar assim. Tem muita gente que fica confusa mesmo. — Foi gentil. — A questão é que para ficar mais de três meses na Irlanda e trabalhar, você precisa desse documento. Mas para tirá-lo, você precisa abrir uma conta no banco, depositar os seus três mil euros, levar o comprovante da conta, uma carta da escola, um endereço fixo e o seu passaporte.

— Então eu preciso arrumar uma casa antes de marcar? — Questionei, preocupada, ao abrir o e-mai lda agência no computador.

— Sim.

— Olha, olha! A mulher da agência disse que marcou o GNIB para dia nove de junho, daqui a dez dias. — Apontei para

o e-mail e ele se aproximou para ler. — Será que conseguirei encontrar uma casa até lá? — Fiquei levemente desesperada.

— Calma, Beatriz! — Ficou sério. — Você está muito nervosa. Não precisa ficar assim, o intercâmbio está só começando.

— Outros problemas virão? — Senti minha expressão ficar ainda mais séria.

— Isso é só o começo. — Ele sorriu.

O garoto de Moletom Cinza (COMPLETO) - Quadrilogia " A Ilha da Esmeralda"Onde histórias criam vida. Descubra agora