Percalços

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Eu estava preocupado, mais do que preocupado

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Eu estava preocupado, mais do que preocupado. Eu estava surtando.

Desde que Rachel deu aquele soco em Victor, ela simplesmente desapareceu. Não atendeu minhas ligações, não estava em casa, e nem ao menos foi ao colégio ou ao trabalho no dia seguinte. Depois da aula, fui direto para a casa dela, decidido a confrontá-la. Se ela não tivesse uma boa explicação para sumir assim, eu estava pronto para brigar.

Quando cheguei lá, a porta da frente estava aberta. Entrei sem dificuldade e segui direto para a cozinha. Foi ali que a vi, e assim que coloquei os olhos em Rachel, soube que algo estava errado.

— Oi, Kenon! Estou fazendo biscoitos de aveia. Quer me ajudar? — perguntou ela, animada, enquanto tirava mais uma fornada de biscoitos e a colocava ao lado de uma montanha que já estava sobre o balcão.

— Por que você faltou ao colégio e ao trabalho e está aqui, assando biscoitos como se estivesse alimentando um exército? — questionei, me aproximando dela e segurando seu braço, forçando-a a parar o que estava fazendo e olhar para mim.

— Acho que me empolguei um pouco... — respondeu, olhando ao redor e só então percebendo a bagunça que havia feito.

— O que está acontecendo? Eu vim porque estava preocupado com você, mas agora estou realmente assustado.

Rachel raramente cozinhava, e quando o fazia, geralmente era algo especial. A mãe dela, Dona Anita, costumava ser quem cuidava das refeições, então aquilo parecia completamente fora do comum.

— Minha mãe está internada. Fiquei com ela até agora, só fui levar o Gustavo ao AMA(Associação de Amigos dos Autistas) e ia voltar, mas... como ela gosta de biscoitos de aveia, achei que seria uma boa ideia fazer alguns — explicou, suspirando enquanto olhava a cozinha caótica.

— O que sua mãe tem? — perguntei, a preocupação crescendo no meu peito. A mãe de Rachel vivia doente, mas dessa vez parecia grave.

— Acham que é leucemia, mas ainda estão fazendo exames — disse ela, num tom incrédulo, como se não acreditasse nas próprias palavras.

— Você deveria ter me ligado. Eu teria ficado com você no hospital. Meus pais poderiam cuidar do Gustavo — disse, arrependido pelo tom de reprovação que usei no segundo que acabei de falar, pois pela primeira vez em muito tempo, vi Rachel começar a chorar.

Sem pensar, a puxei para um abraço. Ela sempre foi a forte entre nós, a que dava conselhos e aguentava firme. Era estranho estar naquela posição, sendo o apoio dela. Eu estava fazendo o possível para não chorar também, enquanto ela se acalmava em meu peito.

— Desculpa — murmurou, afastando-se lentamente após alguns minutos, limpando as lágrimas. — Você pode ir ao hospital comigo? Preciso voltar logo, mas não quero ir sozinha.

— Claro. Vim de lambreta, te levo lá — concordei, ajudando-a a organizar a bagunça da cozinha.

No caminho até o hospital, o silêncio pairava entre nós. Minha cabeça estava cheia de perguntas, mas, naquele momento, qualquer preocupação com o colégio ou a guerra com Victor parecia insignificante.

Quando chegamos, a mãe de Rachel estava visivelmente abatida, mas mantinha seu sorriso gentil. Rachel, por outro lado, estava inquieta, andando de um lado para o outro, conversando com enfermeiros, checando formulários e se certificando de que tudo estava em ordem. Mas em nenhum momento ela perguntou sobre o diagnóstico.

— Parece que estou dando trabalho para minha menina — comentou Dona Anita, num momento em que Rachel saiu do quarto.

— A senhora não tem culpa de estar doente, e tenho certeza de que logo ficará bem — tentei encorajá-la, torcendo para estar certo. Mas, lá no fundo, eu sentia que as coisas não estavam nada bem.

— Tenho leucemia, Kenon. Acho que desta vez as coisas não serão fáceis... — disse ela com um humor melancólico. — Nossa sorte parecia estar melhorando, com Rachel estudando num bom colégio e com o apoio de um bom amigo. Mas aqui estou eu, mais uma vez, acabando com a felicidade dela. Tenho pavor de pensar nela sozinha, cuidando do irmão e enfrentando isso tudo.

Pensei em contar a ela sobre o que vinha acontecendo no colégio, mas logo desisti. Não ajudaria em nada, e eu sabia que Rachel devia ter seus próprios motivos para não ter mencionado.

— Eu prometo que cuidarei dela. A senhora só precisa se concentrar em ficar boa logo — disse, tentando tranquilizá-la. Ela sorriu sinceramente para mim e assentiu.

Passei o resto da tarde no hospital e, mais tarde, acompanhei Rachel e Gustavo durante o jantar. Quando finalmente nos despedimos em frente à casa dela, já era noite.

— Obrigada por hoje — disse ela, enquanto eu procurava a chave da lambreta nos bolsos.

— Não foi nada. Mas você e o Gustavo vão ficar bem? Tem certeza de que não quer ir para minha casa? Meus pais já sabem — ofereci, ainda preocupado.

— Gustavo fica nervoso em lugares que não conhece. Agradeço, mas vamos ficar bem em casa — recusou, com a calma que eu não conseguia entender. Como ela lidava com tudo aquilo sem surtar?

Eu surtaria.

— Você é teimosa como uma alpaca. Vai ao colégio amanhã? — perguntei, já em cima da lambreta.

— Claro! Não posso me esconder depois de começar uma guerra, né? — provocou, zombeteira, antes de acenar e se despedir.

No caminho de volta para casa, minha mente vagava pelas últimas semanas. Lembrei de um livro que li uma vez: Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas? Essa pergunta ecoava na minha cabeça, sem resposta. Mas, deitado na cama naquela noite, percebi que talvez eu não precisasse de respostas. Mesmo que coisas ruins continuem acontecendo, eu cumpriria a promessa que fiz à mãe dela.

Eu cuidaria da minha amiga.

Não me de FloresOnde histórias criam vida. Descubra agora