Take a Chance On Me

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O aroma terrível da cela inundava suas narinas. Uma mistura úmida e profundamente desagradável que parecia escorrer pelas paredes como suor. As paredes em questão pareciam ter sido diretamente esculpidas da rocha do interior de uma montanha e o aroma que elas vertiam poderia ser seu sangue, fluindo como se fosse profundamente doloroso manter seus prisioneiros em cativeiro.

Take a Chance On Me do ABBA tocava em um rádio realmente próximo a porta da sua cela, como uma ironia do destino.

A lâmpada do interior da sua cela oscilava suavemente, chegando a estalar e se apagar por alguns segundos, para voltar ao normal, espalhando sua luz fraca e branca azulada por todo o perímetro. Era como se ela fosse um constante aviso de que não poderiam mantê-lo no escuro por mais de alguns segundos, nem sequer se a noite já tivesse caído.

Ele na verdade estava há tanto tempo naquela cela que não se lembrava mais corretamente se a noite caía. Sua noção de tempo se limitava às suas próprias sensações e aos espaços que existiam entre suas refeições. Apenas isso lhe proporcionava alguma indicação de noite ou de dia.

Tudo que o mantinha ciente de que ainda existia, era um retângulo na enorme porta de metal entre ele e o corredor. Aquela porta tinha a espessura de seu antebraço e para a maioria dos prisioneiros funcionava como um eficiente abafador de sons internos e externos.

Ele ainda podia ouvir os sussurros da vida arranhando fora de sua cela, podia sentir e provar o aroma dos oficiais marchando pelo corredor frio e úmido. Podia sentir seu tédio, seu medo e seu ódio, vertendo como o cheiro das paredes.

O retângulo na porta era o que servia para trazer suprimentos para mantê-lo vivo, e toda vez que ele se arrastava para o lado, uma enxurrada de sons e cheiros era arremessada diretamente contra seu rosto para lembrá-lo que estar ali era passageiro.

Ele alargou as narinas e puxou uma profunda respiração. Estava sentado no chão frio em frente à porta, com uma das pernas inclinada e outra esticada sobre o piso, com seus pés descalços completamente acostumados à temperatura.

Tudo o que lhe era permitido usar era uma calça. Tudo o que lhe era permitido ter era um colchão e um lençol. Nem mesmo sua vida lhe pertencia para que de alguma maneira ele pudesse negociá-la.

Aquele sanatório onde estava confinado não existia nos mapas e certamente continuaria assim. Ele tinha sido feito para aqueles que ninguém gostaria de admitir ao público que existiam, algo que era preferível manter fora dos relatórios e das jurisdições, muito longe de onde quaisquer manifestantes poderiam por ventura ouvir falar deles e sentirem alguma compaixão.

Mesmo os confinados não existiam e se um dia tiveram nomes, eles tinham sido convenientemente apagados. Cada um se tornava o número de sua cela até sua morte, onde seu número pertenceria a outro desafortunado. 146 era o desafortunado do momento.

Ele moveu um pouco suas mãos, deixando-as pender pelas laterais de seu corpo sentado. Grossas algemas pesavam em seus punhos, unidas às correntes tão grossas e poderosas quanto, que lhe permitiam apenas uma caminhada de dois metros, isso permitia que quaisquer oficiais pudessem entrar, ofendê-lo de alguma maneira e rir enquanto ele tentasse alcançá-los para por um fim à sua alegria.

Apertou os olhos por alguns segundos antes de abri-los novamente. Ele estava adquirindo uma cor pálida próxima à da rocha das paredes, como se de alguma maneira o espírito que tinha sido treinado dentro dele, tentasse assimilar o ambiente novamente, para se esconder na luz ao invés das sombras.

Apesar de não possuir quaisquer coisas significantes, como uma tesoura, tinham lhe permitido realmente possuir uma única coisa: seu cabelo era longo, chegando à altura de seus quadris, liso apesar do aspecto selvagem dos nós e da oleosidade que apenas o banho com água fria não era capaz de retirar.

Seu cabelo era de um tom loiro platinado, quase como se os fios tivessem sido feitos da mesma luz da lâmpada de sua cela, beirando um branco puro, como se tivessem sido talhados a partir de madrepérolas. Apesar disso, não eram tão atípicos como seus olhos.

As pessoas chamavam aquela pequena mutação da natureza de quimerismo, uma anomalia que era mais comum em animais do que em seres humanos. Seus olhos eram de cores diferentes, um deles era dourado com ouro derretido, pontuado com uma pupila que sempre permanecia expandida. O outro era prateado como o de um leão branco.

O sussurrar de botas batendo contra o piso de pedra do corredor chamou sua atenção e ele sentiu os oficiais se aproximando gradativamente, até que finalmente a pequena portinhola se moveu para o lado e uma mão enluvada rudemente empurrou um prato de comida e uma garrafa de água para dentro de sua cela.

Antes que ele pudesse se retirar, 146 chamou:

Hey — sua voz era grossa e profunda, rouca de uma maneira que fazia com que acreditassem que de algum modo suas cordas vocais tinham sido afetadas. O eco retumbou de uma maneira sinistra pelas paredes poderosamente construídas — estou um pouco entediado, por que você não vem aqui ser minha namorada por um tempo?

A mão tremeu visivelmente na abertura e ele ouviu a voz xingar em coreano atrás da porta. Uma segunda voz respondeu parecendo profundamente irritada e um momento depois a porta de sua cela se abriu, provocando um rangido que fez os cabelos de sua nuca se arrepiarem.

A luz forte de fora quase queimou seus olhos no momento em que se infiltrou na cela, mas ele pode se adequar rapidamente à nova luminosidade, divergindo primeiramente dois vultos que gradualmente se transformaram em oficiais, carregando em suas mãos cassetetes pesados e pistolas carregadas em seus coldres.

— O que você disse 146? — O primeiro oficial exigiu.

146 sorriu suavemente, deixando uma risada rouca escapar por entre seus lábios fechados. Ele cantarolou lentamente:

If you change your mind, I'm the first in line, honey I'm still free... take a chance on

me...

A reação histérica deles foi mais rápida do que ele imaginava, enquanto ele assistiu calmamente os oficiais entrarem no seu espaço de dois metros onde ele poderia se locomover. Foi um segundo depois de um dos cassetetes voar em sua direção poderosamente sustentando por um braço cheio de fúria.

O golpe atingiu seu ombro e ele chiou, movendo-se para frente para fingir uma queda e tão rapidamente quanto podia, ele puxou uma das pistolas dos oficiais. A raiva nos olhos deles mudou para o pânico em menos de um momento e certamente o terror ficou gravado em seus rostos quando duas balas explodiram do cano da arma, atingindo a testa de cada um deles.

Para os expectadores do lado de fora, o som da pistola atirando não foi mais do que o som de uma rolha sendo puxada de uma garrafa de champanhe. 146 se ergueu sentindo seus ossos doerem pelo golpe e puxou os corpos dos homens mortos para os cantos cegos da cela.

Um deles ficou sobre seu colchão e foi coberto por seu lençol logo depois que ele mudou suas roupas. Ele tinha uma razoável sorte de que o oficial tinha uma altura parecida com a sua, mas ainda assim a blusa puxava um pouco em seus ombros muito mais largos.

Ele puxou seu longo cabelo loiro para o topo de sua cabeça e o amarrou fortemente, cobrindo a parte amarrada com o quepe do uniforme e tendo muito cuidado ao colocar seu crachá na lapela do bolso de uma maneira que apenas parecia coincidência que o tecido encobrisse a foto.

Recuperou sua katana e seu kimono e eliminou todas as suspeitas que decaíram sobre sua passagem, limpando caminho para a liberdade.

Antes mesmo da primeira ronda do amanhecer, ele já estava há muitos quilômetros da prisão, em um bote com suprimentos necessários para uma semana em alto-mar, atravessando o Pacífico, pronto para terminar o que ele havia começado. 

Alessandro Beleni e a Cidade de BaixoWhere stories live. Discover now