Sobrevivendo

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Como entrar naquela casa sem Keana? Tive que descobrir da maneira mais dolorida como seria depois do velório. Passei a primeira noite olhando para o teto e a procurando por toda a cama desesperadamente enquanto chorava abraçada ao travesseiro.

Outra semana começou e me pegou como vinha acontecendo nas últimas noites, escrevendo em frente ao computador, quando tocou a campainha e nem um movimento foi feito em direção a porta. Depois da insistência, começaram quase a esmurrar a porta da frente e a gritar meu nome e como se despertasse reconheci a voz do doutor Jaime. Ao abrir a porta, me deparei com um homem abatido e mais magro, mas com olhar firme e determinado.

_Tento falar com você há dias e já estava imaginando o pior

foi comentando preocupado.
_Sobre?
Perguntei seca.
_Sei que você está sofrendo filha, disse carinhoso ignorando minha grosseria,
—mas tenho certeza que Keana não iria querer vê-la trancada aqui dentro; nem física, nem aqui,
falou colocando a mão sobre o meu coração.
—Ninguém mais que eu vai saber como é difícil acordar e saber que nunca mais poderei tocá-la como faço com você agora. Não foi só uma parte de mim que morreu com Keana, mas a tradição de toda minha família e seu nome que vão morrer comigo.

_Melhor viver uma vida como a sua doutor, distribuindo vida por onde passou do que a maldição da minha, que tudo que toca morre.

—Quem disse isso filha? ...Nunca vi minha filha tão feliz em toda sua vida apenas por estar ao seu lado. Não se culpe pelo que aconteceu, foi uma fatalidade e você não honraria a memória de minha filha se ficar aqui dentro trancada quando há tanta coisa para se fazer lá fora.

Suas palavras me remeteram a lembrança de Keana que sempre pensava em algo que pudesse fazer para colaborar pelo bem comum.

Ela era assim, pensava antes no bem dos outros que nela própria. Realmente Keana iria querer que eu continuasse de onde ela tinha parado e percebi que era isso que o doutor Jaime tinha ido fazer ali, me passar o legado que ela tinha deixado. Levantei-me e pedi licença e pela primeira vez naquela semana, lavei o rosto e me olhei no espelho.

Não era aquela pessoa derrotada que Keana amava, mas sim a decidida que enfrentou e enfrenta obstáculos para alcançar seus objetivos.

Voltei para sala e encontrei o doutor Jaime com uma foto nossa em algum dia feliz na mão.

_Ela está tão bonita aqui,
me disse como se fosse um lamento.
_Fique com ela doutor, as minhas melhores lembranças de Keana não estão em nossas fotos juntas. O senhor tem razão, Keana iria querer que eu continuasse a vida, não pelo simples ato de viver, mas de fazer da minha vida algo que gere frutos para muitos.

_Eu sei e por isso estou aqui, falou retirando a foto do porta-retratos e a guardando no bolso do terno. Você e Keana eram legalmente reconhecidas como um casal e com sua morte, você é herdeira de seus bens.

_Eu não quero nada doutor, falei apressadamente.
—Não é isso que eu queria de Keana.
_E eu não sei?...mas não seja orgulhosa ao ponto de não aceitar o que lhe é de direito.
Tentei argumentar e ele me mandou calar e o escutar.
_Keana era minha única filha e claro que com isso tinha bens, não só por mim, mas também por parte da mãe, que também era de uma família rica. Mas isso não a impediu de querer conquistar seus próprios frutos através de muito trabalho e esforço. E agora vejo a possibilidade de seu esforço ser em vão se você não aceitar os frutos desse esforço, até porque por testamento, você é minha herdeira também.

_O que?...Olha.. Me desculpe doutor, eu me sinto honrada por tudo isso, mas sinceramente eu não saberia viver nesse seu mundo de aparências, regras e falsidades. Era um esforço enorme e o senhor sabe, conviver com a maioria das pessoas que freqüenta sua casa, só para começar. Elas nunca me olhavam como outro ser humano e às vezes penso que a maioria me achava mais uns dos adereços que Keana tinha.

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