O Acidente

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Shawn voltou muito abatido do Brasil porque o pai estava mal. Perguntou por Lucy e eu simplesmente comentei que ela tinha conseguido algo melhor e ele não se sentiu curioso para continuar o questionamento. Sempre confiou em meus julgamentos e nunca desconfiou de nada.

Apesar de nossa relação ser quase de irmãos, decidi que não queria dividir com ele mais a mesma casa, não poderíamos continuar nessa farsa que só atrasava a vida de ambos, pois se Shawn caísse na realidade de que nunca mais me teria, seria mais fácil quem sabe se apaixonar e arrumar alguém que correspondesse como ele merecia, mas ao vê-lo tão feliz com a filha, decidi dar um pouco mais de tempo, enquanto procurava uma nova babá para Sofi. E depois de muitas entrevistas, encontrei Berta, prima de um cunhado de Roger, senhora já viúva e com filhos criados, além de netos e com toda a paciência necessária para me auxiliar nessa difícil arte de educar outro ser humano. Além de não se importar de me acompanhar nas viagens, porque não queria me afastar de minha filha por nenhum motivo. Agora ela era a esperança que nutria minha alma. Tudo que eu poderia querer era vê-la crescer feliz e ter um futuro onde pudesse ser uma mulher completa com todas as chances para encontrar o amor.

Tinha terminado mais uma turnê e voltava para casa depois de dois meses de viagens por toda Europa e até Austrália. Os anos se passaram como plumas sopradas por uma brisa suave. Mergulhei na música e na criação de Sofi.

Shawn colaborava sempre que estava por perto, pois agora, depois da morte de seu pai teve que ficar uns seis meses no Brasil sem nos vermos para colocar em ordem os negócios e inventário da família, claro que o doutor Louis tinha sido muito útil.

E com isso esqueci a estória da mudança de casas, já que via que era real o seu amor pela filha e ele nunca mais tentou uma aproximação romântica para comigo.

Dona Sinuhe também nos deixou, mas acredito que tenha pagado seus pecados deitada naquela cama sem poder fazer nada sozinha, dependendo de terceiros para tudo e sem poder nunca mais pronunciar uma única palavra. Prefiro crer que tenha também perdido a racionalidade, o que teria sido melhor para quem era tão orgulhosa.

Zefa me ligou para dar a noticia e saber quais os procedimentos que deveria tomar. A orientei para que ligasse para o doutor Louis, que com a competência de sempre providenciou um enterro simples, porque na verdade em sua vida ela tinha construído apenas inimigos. Está hoje enterrada ao lado do homem que nunca amou e do filho que perdeu. Não derramei lágrimas por meus pais e talvez tenha pagado por isso.

Os acusei de muitas coisas, mas no fim, hoje no estado que me encontro, consigo perdoá-los, pois eles faziam parte de um mundo que queria que não existisse mais: o da desigualdade social e lutava muito para isso; pelo menos tentava fazer a minha parte, que era um grão de areia, mas se cada um fosse um grãozinho também, pensava comigo mesma, logo encheríamos a praia.

Já Sofia me fez crescer muito como ser humano, porque ser mãe é uma experiência única. Minha luta era para que ela vivesse em um mundo mais justo, apesar de todas as facilidades que a vida tinha lhe presenteado, desde cedo gostava de levá-la comigo para lugares onde crianças se alegravam apenas com um simples prato de comida por dia. Minha filha era fonte de surpresas e ensinamentos, sempre comentava com madame Berta, pois para ela não havia diferenças, já ia chegando e se enturmando, com um carisma próprio de pessoas que se fazem amadas pela simplicidade de seus espíritos nobres e generosos, sempre demonstrado por seu sorriso franco, talvez puxado do pai. Com tão pouca idade já se preocupava com as outras pessoas que ela via não poderem desfrutar do que ela achava que tinha de bom. No final de ano com o pai, sempre separava alguns brinquedos que não gostava mais e saía para distribuir porque apesar da idade sabia que o que para ela era desnecessário, seria alvo de alegria para outra criança.

Estava feliz, apesar de saber que não amaria mais ninguém, a vida tratou de me dar outras alegrias, minha filha, minha música, a amizade de pessoas queridas, tudo isso fazia que me sentisse mais completa. Mas lá no fundo, sabia que faltava o amor de Lauren, mas tive que aprender a viver sem ele e então me fechei dentro dessa redoma que eu achava seria a vida perfeita para mim.

Mas tudo mudou naquela manhã, que de nada tinha de diferente das outras. Uns dias antes, Shawn veio falar comigo que tinha conseguido uma boa comissão e queria comemorar. Tinha um amigo que possuía uns chalés nos Alpes franceses e seria uma oportunidade de tirarmos umas férias da agitação dos últimos tempos.

_Não seja estraga prazeres.
quase suplicou.
—Será bom para todos além de eu poder apreender a esquiar. E Sofia irá adorar não é filha? Também vamos comemorar o aniversário com um pouco de atraso de certa menininha.
disse pegando a filha no colo.
_Vamos brincar na neve mama?

Pediu com o costume de misturar línguas que agora já estava começando a me preocupar.
_Mas eu não posso me afastar por muitos dias, disse meio desanimada. Tenho quer participar da gravação de um dvd para um musical que está na moda. Então posso ficar fora só por uma semana.
_Então ta né, melhor que nada, falou Shawn de uma maneira brincalhona.
—E você meu caro Roger pode arrumar as malas que irá viajar também.
_Eu senhor?
Perguntou surpreso.
_Claro e madame Berta, também lógico.
E já começou a fazer mil planos. Dói-me lembrar de sua alegria antes daquela viagem. Deixei que ele fizesse tudo a seu modo e sua animação era tanta que acabou contagiando a todos nós.

Na manhã programada para a viagem, pegamos um vôo até Paris e alugamos um carro porque Shawn fez questão de ir dirigindo até os chalés do amigo para que Sofia curtisse a paisagem, dizia. Madame Berta e Harold haviam viajado no dia anterior para dar uma boa limpeza no local em que ficaríamos, além de providenciar o que fosse necessário para nossa estadia, como alimentação. Quando saímos, estávamos felizes e despreocupados porque todas as providências haviam sido tomadas. Não sei se foi distração ou destino. Shawn não corria demais até porque as estradas estavam tomadas pela neve. Ele estava alegre como não o via há muito tempo e a todo o momento se virava para conversar com a filha que mimava até demais.

Não quero aqui procurar culpados além do destino, que me tirou naquele minuto Shawn e a minha música. Deixou-me pelo menos Sofi, que é onde busco inspiração para continuar, principalmente ao vê-la feliz correndo pelo pátio da fazenda com Zefa atrás, sendo a criança que nunca tive a oportunidade de ser. Minhas mãos doloridas me recordaram novamente aquele minuto, quando a escuridão tomou conta de minha vida e só despertei dois dias depois em um hospital francês.

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