Sobrevivendo

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Dor, essa é a primeira lembrança que tive ao abrir os olhos depois do acidente. Misógina a segunda. Os médicos disseram que tiveram que me sedar porque voltei muita agitada da cirurgia. Que cirurgia? Pois a dor que sentia nos braços beirava o insuportável. Foi quando notei meus braços enfaixados. Então veio toda a explicação técnica e sem emoção que os médicos se acostumam para serem eficientes nessa profissão. Depois de quase meia hora de palavras do como e do por que, entendi que os vidros tinham cortados meus braços profundamente, até pelo que os médicos achavam que por instinto eu devia ter protegido meu rosto na batida. Eles tinham conseguido juntar os nervos avariados e a dor era um bom sinal, pois lhes dava a esperança que eu poderia voltar a sentir os dedos e movimentá-los. Mas tocar, eles foram categóricos, era quase impossível. Meus olhos pareciam parados em um algum ponto, porque não demonstravam reação nenhuma.

_Senhora, está nos entendendo? Perguntou um dos médicos que estava na sala em um inglês meio forçado, com um forte sotaque francês.
_Minha filha onde está? E meu marido? Também estão aqui? Questionei em um francês perfeito.

Esse médico, depois descobri tratar-se do doutor Mattews, um dos maiores especialistas nessa área de reconstrução de nervos da França.

_Senhora.
continuou respirando pesadamente como todos ali.
—Sua filha está bem apesar do susto. Teve alguns cortes apenas superficiais e está em um hotel aqui perto do hospital, creio que com uma pessoa de sua confiança, Berta se não me engano. Ela e outro empregado da senhora se preocuparam quando anoiteceu e vocês não se comunicavam. Fizeram o mesmo trajeto de volta e encontraram o veiculo batido em uma árvore. A polícia local acha que houve uma derrapagem e o carro foi em direção à árvore com muita força. Infelizmente, seu marido sofreu múltiplos ferimentos e não resistiu. Sinto muito.

Virei o rosto talvez para que não vissem as lágrimas que começaram a rolar. Mas aquele não era momento de chorar e perguntei onde estava o corpo de Shawn.

_Ainda está no hospital aguardando a sua liberação, senhora.

Shawn, me conhecer foi a pior coisa que lhe aconteceu na vida, pensei com o remorso por dentro. Poderia ter sido feliz longe de mim, porque nem te amar eu consegui.

_Preciso de um telefone, por favor, no que fui prontamente atendida.
_Quanto a sua recuperação, senhora...
_Desculpe doutor, mas tenho um assunto mais sério para tratar agora.
—Quero ficar um pouco só. Peça a uma enfermeira para vir até aqui se não for pedir muito. Todos saíram e entrou na sala uma mulata que percebi logo não ser francesa pelo seu rebolado e o sorriso diferente do sisudo povo francês.
_Pois não senhora? E pelo sotaque percebi que provavelmente vinha de algumas das colônias francesas na África.
_Em primeiro lugar, já que vamos conviver por um tempo por aqui gostaria de saber seu nome e de onde é.
_Meu nome é Normani, senhora e sou marroquina.
_Em segundo lugar pode me chamar por Camila , Normani.
_Como queira Camila e pode me tratar por Mani então. O que mais você precisa?
_Que faça uma ligação para mim para o número que vou te passar e depois ponha no viva-voz, por favor.

Ela discou os números e perguntou se eu queria que se retirasse o que falei não ser necessário, até porque passei logo para o português. Quando consegui falar com o doutor Louis, pedi que viesse assim que possível para a França para me ajudar na liberação e enterro de Shawn.

_Quero que ele seja enterrado junto com o pai, aí no Brasil doutor.
_A senhora virá junto? Questionou-me.
_Com certeza não, pois não sei ainda quanto ficarei aqui, mas quero que o senhor providencie um enterro rápido, porque senão Ally não merece que isso se prolongue por muito tempo.
_Sei que não é hora, mas o irmão depositava uma quantia para ela todo mês e agora a senhora quer que eu faça o quê?
_Continue do mesmo jeito até que eu tome alguma outra decisão. O aguardo o mais rápido possível.

No resto daquele dia que para mim não queria acabar, pedi para me trazerem Sofi que correu assim que me viu e se escondeu no meu colo. Estava assustada claro, ainda sem entender bem o que tinha ocorrido. Cortou-me o coração quando me perguntou do pai. Não soube o que dizer e madame Berta me ajudou dizendo:
_Vamos Sofia sua mãe tem que descansar agora, depois vocês conversam mais. Roger está nos esperando com aquele bolo gelado que você adora.

Ela se foi mas com o olhar mais triste do mundo e aquilo, assim que fecharam a porta foi o estopim para eu desabar em lágrimas. Depois dormi como se entrasse em coma e só acordei no dia seguinte. Mani me obrigou a me alimentar com algo leve, apesar de minha total falta de vontade. Assim que terminei, se retirou e doutor Mattews entrou.
_Muito bem senhora, vejo que está se restabelecendo rapidamente. Isso é muito bom.
_Vamos ao que interessa realmente, doutor. Quais minhas chances de voltar a tocar?
Falei sem rodeios.
_Pois bem. A cirurgia que realizei na senhora foi um sucesso no ponto de vista das condições em que a senhora me foi apresentada. Os danos foram muito sérios, não vou mentir para a senhora, mas consegui ligar os nervos dos braços e mãos e com muita fisioterapia, a senhora não terá problemas em recuperar os movimentos mais simples como comer sozinha ou escrever. Mas também não mentirei que para movimentos mais complexos como tocar piano, as previsões não são animadoras.
_Ou seja, porcentagem zero; disse sarcástica.
_É difícil prever como já foi dito senhora, pois cada organismo reage de uma maneira. Só não quero dar à senhora esperanças para um fato que pode não se concretizar.

Os médicos, raça tão sem emoção, pensei. Tudo tem uma explicação dizem eles, mas eu iria ter que mostrar-lhes o contrário, ou então não saberia o que fazer. Combinei que o início dessas fisioterapias seriam feitas em Londres, onde ele me recomendou para um médico fisioterapeuta renomado e amigo seu.

_A senhora deve ficar por aqui mais uns dias, disse percebendo minha cara de desgosto. Vamos tirar os pontos e continuar com os curativos que vão ajudar no restabelecimento dos nervos até a senhora começar com as sessões de fisioterapia.

Aquela talvez tenha sido a noite mais longa de minha vida, a passei acordada, pensando no meu futuro, no que aconteceria na minha vida sem a música, ou como seguiria dali em diante com uma criança para criar sozinha, pois agora Sofi era minha única família. As horas corriam devagar e eu não tinha vislumbrado nenhuma alternativa aceitável.

No dia seguinte, já passava das três da tarde aqui na França quando doutor Louis chegou e foi conduzido imediatamente ao meu quarto para me auxiliar com a tarefa mais difícil que teria aquele dia. Era necessário o reconhecimento do corpo de Shawn por alguém da família para providenciar sua liberação. Ao descer com dificuldade aquele porão frio e escuro, me apoiei no doutor Louis que se mostrou mais uma vez essencial. A visão do corpo dilacerado de Shawn não esquecerei jamais. Ainda me assombra em pesadelos que agora se tornaram mais constantes.

_Vá com Deus.
se afastaram todos, enquanto me despedia daquele caixão fechado. —Sinto muito se não pude te amar e quero que saiba que nunca vou deixar que sua filha te esqueça e ela vai saber que homem maravilhoso você foi.
terminei de falar entre lágrimas. Dei as últimas instruções para doutor Louis, que me abraçou forte e disse aguardar notícias de minha melhora. Ao voltar para o quarto, me preparava para outra batalha mais difícil talvez que voltar a tocar que era encarar minha filha e contar a ela que nunca mais veria o pai que tanto amava.

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